Disciplina significa ser “discípulo de si”, aprendi isso lendo um texto da
1, escritora e grande capricorniana trabalhadora da palavra. Eu, também regida por signo de terra, tenho uma relação complexa com a disciplina. É que touro gosta tanto da determinação e do afinco quanto preza pelo conforto e pelo deleite. Mas calma, esta não é uma edição sobre astrologia (não tenho conhecimento suficiente para isso), e sim sobre o compromisso que uma escrita de fôlego longo demanda.Como contei na última edição, estou escrevendo minha tese de doutorado, na verdade, ainda estou bem no começo desse processo. Um começo volumoso, é verdade, porque o doutorado exige isso. No momento, tenho um pouco mais de 65 páginas escritas que precisam ser revisadas e organizadas para a qualificação, o momento em que outras pessoas pesquisadoras vão ler e opinar sobre esse texto, indicando o que está dando certo e o que precisa ser reformulado. Ando bastante ansiosa para qualificar, porque é angustiante escrever sozinha sem saber muito bem para onde está indo. Como já disse, sou de terra, gosto de pisar em chão firme, e o início da escrita de uma tese parece ser o oposto disso: é um mar aberto, revolto, imprevisível.
Criar uma rotina confortável tem sido fundamental para encontrar um pouco de solidez nessa fase de incertezas da escrita. Entender o horário em que mais gosto de escrever (prefiro as manhãs com a cabeça o mais fresca possível), insistir no meu processo mesmo que parece muito lendo (meu jeitinho analógico de anotar tudo à mão, ruminar e só depois levar para o computador), me alimentar bem, fazer exercícios físicos (um beijo pro grupo do gymrats), manter meu espaço de trabalho limpo e organizado, enfim, cuidar disciplinadamente da manutenção da vida. É claro, essa não é uma lista universal, são apenas as minhas diretrizes.
Como bem escreve a Laura no seu texto, cada pessoa precisa descobrir o que funciona no seu processo criativo e qual é a melhor rotina para seus desejos e necessidades. Ter disciplina é se comprometer com esses parâmetros, com esse exercício de autonomia. É aí que entramos no capcioso bosque do que parece fácil, mas é difícil.
Porque ser discípula de si implica em um ponto de partida crucial: se ter em alta conta. Não é nada simples sustentar a autonomia, muito menos se comprometer com as próprias escolhas que são, afinal, meus desejos mais íntimos.
No meio dessa lista de ações no imperativo que organizam as horas do meu dia muitas dúvidas, inseguranças e angústias me atravessam, interrompendo a rotina, enfraquecendo a fé dessa discípula aqui.
Nessas horas, acho que fazer um balanço geral ajuda. É claro que a ansiedade e a insegurança são consequência direta de estar investindo tempo e energia em uma formação acadêmica em um tempo histórico de precarização do ensino. Há o pavor da falta de trabalho e de dinheiro, do futuro suspenso em um mar de I.A. sufocando o pensamento crítico, isso tudo sem levar em conta a questão climática, as eleições do próximo ano, os genocídios em curso, os bilionários estúpidos que controlam o mundo. Não deve ser um bom sinal estar viva em 2025 e não sentir angústia.
Ainda assim, há na insegurança para escrever um ponto íntimo que até faz contato com o horror da materialidade histórica, mas que no fundo fala sobre medos bem mais subjetivos. Porque no meio, ou na contramão, dessa angústia, há um tanto de desejo. Um desejo que, quando calculo, parece irracional, descabido, quase um luxo.
Escrever uma tese nesses tempos? Para quê exatamente? Quando minha cabeça começa a tomar esse rumo, sei bem que a insegurança é muito mais sobre mim. O que mais é o desejo senão o que não se curva à produtividade. Por que é, então, que o meu desejo deve ser medido, recriminado, interrompido assim?
Para ter disciplina é preciso sustentar ter disponibilidade para si. Disponibilidade para o que não vai gerar nada além do desejo. Dizer sim para o tempo e a dedicação que o desejo de fazer uma boa tese me pede é também sustentar muitos “nãos” para as pessoas que amo, para eventos e oportunidades de trabalho, para os medos e para os outros desejos que também me constituem.
Abrir esse espaço em que só eu entro dá muito trabalho. Tenho sentido que me dedicar a essa escrita de longo fôlego é mesmo como ativar um músculo novo e pouco a pouco ganhar força.
Quando me pego enfrentando essas crises de disciplina, lembro com frequência das personagens da Laura Cohen. Em seus últimos três romances, Laura criou personagens que trabalham com arte e têm uma relação quase obsessiva com seus ofícios. São personagens disciplinadas, porque vigentes, nos termos da Elena Ferrante, vigiam a si mesmas buscando ampliar suas vidas, suas práticas, suas descobertas através da arte. No fundo dessas crises, lembro que é isso o que desejo também, ainda que leve toda a vida.
Em 2022, fiz esse vídeo contando sobre a minha leitura do “Caruncho”, um dos romances da Laura, deixo aqui para vocês conhecerem também:
Na última edição, criei um paralelo entre escrita e cozinha para falar sobre algumas das etapas do preparo de um texto. Desde então, sinto que cheguei numa etapa nova que, até voltar a esse texto da Laura Cohen, estava vendo apenas como um bloqueio, uma crise, mas agora entendi que é, na verdade, o tempo de deixar o texto descansar.
Em “Disciplina para escrever tem a ver com fazer pão”, Laura apresenta o abandono temporário como uma das etapas da escrita:
É quando cansamos de um texto e o deixamos de lado, o que é bastante saudável para a escrita. Tudo que escrevo passa por dias, semanas ou até meses de abandono. O abandono, portanto, pode ser um método e não uma falta de disciplina, o abandono inclusive pode ser estimulado.
Senti um alívio profundo ao ler isso. Entendi que depois de dois meses de escrita pesada, cheguei em um ponto em que preciso me afastar do texto, deixar suas questões no fundo da minha cabeça, enquanto vivo, leio e escrevo outras coisas. Esse abandono é também uma forma de criar distância para voltar com a cabeça fresca e um olhar menos colado ao que escrevi. Na próxima edição compartilho com vocês qual fase vem depois do texto devidamente descansado.
O texto da Laura Cohen está disponível aqui : https://estrategiasnarrativas.org/disciplina-para-escrever-tem-a-ver-com-fazer-pao
Escrever uma tese requer uma busca pela "verdade", não só a nossa própria verdade que requer disciplina, pesquisa, esmiuçar autores. Trabalho árduo. E tem essa busca pela originalidade. Enfim. Conversas podem ajudar a colocar pra fora aqui que ainda não conseguiu colocar no papel. Boa sorte!
Concordo muito quando você diz que "abandonar o texto", se distanciar por um tempo do escrito, é algo benéfico. Esse distanciamento temporário em alguns momentos foi ótimo para a minha dissertação de mestrado. Agora estou amadurecendo a ideia de um doutorado. E tenho certeza que suas impressões serão úteis para mim. Li você por curiosidade, aleatoriamente, e adorei.