Formas de olhar e narrar um país
um ensaio a partir de "Ainda estou aqui", "Fico te devendo uma carta sobre o Brasil" e "Lugar de negro"
1.
Depois de assistir Ainda estou aqui me peguei pensando na cena do quarto de empregada. Aquela mulher que sempre esteve ali, no canto da tela, enfim, aparece sozinha. Pela primeira vez com os cabelos soltos, um cigarro na mão e o olhar de quem não tem tempo para se ver perdida, já arquitetando qual jeito vai dar dessa vez.
Uma mulher que poderia ser minha avó Alaíde que em meados dos anos 1960 saiu da Bahia para o Rio de Janeiro para habitar um desses quartos, como tantas outras mulheres nordestinas que viveram sob a ditadura e o seu novo modelo econômico.
A cena talvez seja insuficiente. Dura apenas alguns segundos. A personagem segue sem fala, sem história. Mas a imagem existe e me capturou. Em sua insuficiência, essa cena deixa escapar uma falta.
2.
Em outubro de 2018, um ano que certamente ainda não acabou, eu trabalhava em uma produtora audiovisual, a Daza Filmes. Nessa época, a Carol Benjamin, uma das sócias, estava terminando de montar seu filme Fico te devendo uma carta sobre o Brasil. Me falta um adjetivo para descrever como era passar os dias acompanhando imagens, documentos e cartas sobre a ditadura brasileira enquanto enfrentávamos o segundo turno das eleições presidenciais. Se eu lembro daqueles meses, a sensação que tenho é uma imagem: um corredor escuro.
3.
O início de Ainda estou aqui tem um excesso de brilho. A família branca que mora de frente para o mar parece um tanto fora de tom dos debates da arte e do pensamento brasileiro contemporâneo. O Leblon é longe demais do centro que vem sendo, com muito empenho, reformulado em nosso país. Por que contar essa história? Por que estamos vendo a felicidade quase imperturbável dessa família?
É o olhar da filha e depois da mãe que anunciam o furo nessa realidade aparentemente calorosa e perfeita. São os seus olhares vigilantes que percebem o horror à espreita.
Esses olhares assim como o contraste entre luz e escuridão têm um efeito importante na narrativa do filme. A mulher que tem seu mergulho no mar interrompido pelo som dos aviões da aeronáutica. O frenesi da juventude interrompido quando entram em um túnel e dão de cara com os militares. Até que o terror se aproxima, toma a casa inteira. Janelas e portas fechadas. As cores e o calor perdidos dentro de uma solitária. E mesmo quando a luz volta, o brilho já não é o mesmo.
4.
Em 2017, quando cheguei na Daza, o filme da Carol já existia, mas era um material em processo. Ainda não se chama Fico te devendo uma carta sobre o Brasil1. O título assim como final em aberto, porque o filme ainda estava em montagem, e cada escolha transformava o sentido da história, uma história que, por sua vez, ao ser a história de uma família transformada pelo Brasil, também estava em processo.
No entanto, assim que cheguei assisti uma versão do documentário chamada Iramaya, nome da avó da Carol. Sentada na minha mesa de trabalho fui conduzida pela história dessa mulher, uma mãe de família, dona de casa, esposa de um coronel, que se envolve na militância contra a ditadura depois que seus dois filhos são presos pelos militares. A vida de Iramaya se transforma durante esse período histórico, para lutar pela vida dos filhos - que sobrevivem, são exilados e depois voltam ao Brasil-, ela se torna uma pessoa totalmente diferente, com um futuro que talvez fosse impensável até a ditadura furar a sua ordem familiar.
O olhar de Carol sobre a vida da avó revela que no meio daquela escuridão muita vida ainda insistia em acontecer. Olhares vigilantes, vigentes, que, como diria Elena Ferrante, “tem a ver com a necessidade de expandir a própria vida”. Uma vigilância que se ocupa de viger, de cuidar e que é, portanto, oposta ao terror de uma política de morte.
5.
No olhar de Fernanda Torres em sua interpretação impecável de Eunice Paiva vejo o olhar de Iramaya e Carol Benjamin. Mas também imagino o olhar de tantas, inúmeras, mulheres brasileiras que tiveram suas vidas atravessadas pelo Brasil, um país regido em sua estrutura por políticas de morte, e que continuaram em vigília. Penso nas mulheres da Vila Autódromo que lutaram contra o Estado que invadiu suas casas e destruiu o território em que suas famílias há décadas viviam. Penso em Marielle Franco e em sua família. Penso em Anielle Franco, que entra na política institucional a partir do luto que transforma para sempre sua vida.
6.
Na mesma semana em que assisti Ainda estou aqui reli Lugar de negro, livro de Lélia Gonzalez publicado em 1982. A primeira vez que li este texto foi dentro da Faculdade de Letras da UFRJ, naquele outubro de horror, em 2018. Lembro o que senti ao ter contato com as palavras de Lélia: A descoberta de uma memória que não me foi contada, nem na escola, nem na faculdade, ou no cinema e na literatura que até então conhecia. A história de como os movimentos negros se organizaram durante o período ditatorial e de como a população negra, a maior parte da população brasileira, foi impactada por esse regime - uma história que ainda precisa ser contada e que não consta, por exemplo, no documento da Comissão Nacional da Verdade2.
Lélia, em seu olhar vigente que revisa a história brasileira determinando que é impossível contá-la sem falar da participação das pessoas indígenas e negras na construção desse país, redimensiona a violência da ditadura. Ela descreve como o horror que entra dentro da casa da classe média e da elite brasileira, esse túnel em que é difícil de enxergar uma saída, constitui a realidade da maior parte da população brasileira desde que esse território começou a ser colonizado, revelando como nunca experienciamos de fato uma democracia:
“[...] a opinião pública brasileira só tomou conhecimento da existência da tortura a partir do momento em que a repressão passou a praticá-la nos jovens de classe média que se opuseram ao regime [...] Se a gente se interessasse mais pelo que se passa efetivamente no cotidiano da grande massa negra, desde a escravidão, a gente saberia que tortura sempre existiu em nosso belo país tropical.”
7.
Ao contrário de Iramaya, Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, lançado em 2020, não se concentra apenas na narrativa da avó de Carol, mas entrelaça três gerações: avó, filho e neta. O olhar vigente da diretora vai além de enaltecer a memória da avó que se tornou uma heroína e do pai que para sempre será um sobrevivente da violência dos militares. Ela investiga que marcas essa violência deixa, como esses anos de medo, angústia e vigilância afetaram sua família. Carol escuta os silêncios, como filha e neta, mas principalmente como uma artista que se aproxima da história familiar para também criar distância dessa narrativa, escuta o que permanece não-dito, o avesso dos mitos. O seu interesse é pelas histórias que não foram contadas, que precisaram ser silenciadas. De sua perspectiva de herdeira dessa memória, a diretora escolhe apontar para as faltas, as fissuras pode onde o Brasil entrou, lacunas que os arquivos oficiais são insuficientes para preencher.
Requer uma sensibilidade trabalhosa deixar que o silêncio tome seu espaço sem ter a pretensão de preenchê-lo.
Acompanhar o processo de criação da Carol me ensinou muitas coisas e assistir ao Fico te devendo uma carta sobre o Brasil abriu caminhos para que eu me perguntasse sobre a minha própria família, como os silêncios que herdei contam também histórias sobre o nosso país. Como os arquivos, materiais e sentimentos revelam formas de olhar e narrar uma nação?
8.
Volto ao quarto de empregada e o que esse breve frame me desperta. O meu olhar também vigilante ao que falta. Me perguntam o que as histórias perdidas de Alaíde podem ainda me contar sobre o Brasil. Abro espaço para ouvir esse silêncio.
Oficina criativa: Mulheres que Escrevem de verão
Como comentei nas últimas edições, estou de férias das minhas oficinas, laboratórios e mentorias criativas. Mas retomo as atividades em janeiro com a já clássica Oficina criativa: Mulheres que Escrevem de verão. Essa é uma oficina de quatro encontros online em que eu e minha parceira
passeamos por diferentes gêneros literários para refrescar a criatividade. A cada encontro, compartilhamos um dossiê de leituras e um exercício criativo. Vem começar 2025 escrevendo com a gente?As informações completas estão no Formulário de inscrição.
Carol comentou no seu Instagram sobre como a relação entre Fico te devendo uma carta sobre o Brasil e Ainda estou aqui.
Sua carta ressou por aqui, Taís. Obrigado por compartilhar. Vivo um momento de exílio voluntário, num lugar repleto de expatriados em que as pessoas perguntam "onde é o seu lar?", em vez de perguntar de onde você vem. Eu me pego com dificuldade de dizer que o Brasil é o meu lar, porque enxergo o país onde nasci como um lugar violento por natureza. A violência está na gênese da nossa sociedade, no genocídio dos povos originários, na escravização dos povos africanos. De que outra forma uma minúscula elite branca conseguiria manter o controle sobre uma imensa população aprisionada senão pela violência? E essa violência não se esgota, ao contrário se recicla e se renova em formas mais sutis de apresentação, mas ainda sim violência. Sempre perpetrada pelos mesmos atores, contra as mesmas vítimas. Eu não quero isso pra mim, não quero isso para os meus filhos.
Que texto maravilhoso, Taís! Especialmente a costura sensível que você fez com a memória que Lélia nos ensinou, como país, a ter (ainda que muitos ignorem). Que alegria encontrar sua newsletter. A conheci quando você e Eliane de Christo falaram lindamente do "Mudar: Método", do Édouard Louis, na Biblioteca Mário de Andrade. Um abraço!