1.
Uma certa inquietação se iniciou na semana em que visitei “Costura da memória”, exposição individual a Rosana Paulino no MAR - Museu de Arte do Rio e, logo em seguida, “Suturar Libert-ar”, exposição individual de Marcela Cantuária no Hélio Oiticica.
Cantuária e Paulino são duas artistas brasileiras contemporâneas que estão produzindo, a partir do presente, imagens sobre o passado para projetar outras possibilidades de futuro.
Isso acontece em 2019, um ano depois de perdermos as eleições. Um momento em que a sensação de estar acuada tomava conta de tudo. Parecia muito difícil imaginar o futuro.
Ver as imagens criadas por Paulino e Cantuária foi como levantar os olhos dessa nebulosidade e enxergar uma sobrevivência entre os tempos:
“O que cada uma dessas artistas propõe é o reencontro com o que nos foi e continua sendo tirado. Tudo isso acontece agora. Uma cidade em guerra dentro de um país em guerra. Escrevo em agosto enquanto a Amazônia queima e o genocídio da juventude negra no Rio de Janeiro ganha respaldo institucional de um governador abertamente fascista. Se estamos em guerra, essa guerra não começou nesses últimos anos. Quando o ar se estreita e parecemos vencidos, apenas identificar nossos inimigos não é suficiente. Sobreviver é reativar as genealogias que participam de nossa insurgência. Tudo ainda circula nesse mesmo espaço”.
[Trecho do ensaio “Notas sobre 3 acontecimentos no Rio de Janeiro”.]
2.
Nesse mesmo ano, eu lancei pela edições Macondo a plaquete “Houve um ano chamado 2018”.
Dedicado as que perderam, esse livro começou a ser escrito quando eu estava tentando escrever uma outra coisa, um livro sobre o passado da minha família. Esse projeto de escrita foi interrompido pelo meu tempo histórico, pelas mortes pessoais e políticas que testemunhei naquele ano, pelo medo alucinante que envolvia a todas nós durante aquela eleição.
“Houve um ano chamado 2018” é uma tentativa de captar a sensação de um tempo. Não o que aconteceu, mas como nós nos sentíamos.
Só depois entendi que ele é também um trabalho de luto.
3.
Ainda em 2019, movida por alguma tentativa de imaginar que iríamos atravessar o tempo presente, resolvi que ia ingressar no mestrado em literatura. Para tentar ver alguma possibilidade de futuro, comecei a pesquisar as imagens de insurgência na poesia brasileira contemporânea escrita por mulheres.
Passei esse ano me preparando intensamente para o processo seletivo. No dia da prova, tive uma crise de ansiedade.
Ainda assim consegui fazer a prova, talvez só porque tenha escolhido responder uma questão que falava sobre “As teses da história”, do Walter Benjamin.
Quando defendi minha dissertação, em novembro de 2022, depois de termos vencido as eleições, escolhi começar minha fala pelo trecho que essa questão citava:
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
4.
Estava esperando uma performance da Natasha Felix começar, quando tive a chance de ter uma conversa com o André Capilé sobre o meu projeto de pesquisa para o mestrado, que envolvia, inclusive, a poesia da Natasha. Sempre muito querido, Capilé me ouviu com atenção e disse que eu deveria conhecer o Fred Coelho.
No início de 2020, ingressei no mestrado em Ciência da Literatura na UFRJ, mas puxei, como aluna especial, a disciplina “O que pode o arquivo?” ministrada pelo Fred Coelho na Puc-Rio.
Só tivemos uma aula presencial antes da pandemia, em uma época em que o adjetivo “presencial” não era o enunciado que é hoje. Mas foi o suficiente para eu presenciar um tipo de pensamento que mudou a forma como eu olhava para a minha pesquisa até então, porque ganhei um nome para uma questão que existia ainda sem forma em mim: Arquivo.
5. Ler sobre as reflexões que homens cis brancos estadunidenses ou europeus produzem acerca do conceito de arquivo me deixava intrigada. Alguma coisa nessa teoria não batia para mim. Eles temiam o acúmulo, a estabilização, o monumento. Mas as pessoas dissidentes que vivem sendo colocadas à margem da história nunca correram esse risco. Para nós, mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQ+, o risco é a fratura, a perda, a extinção.
Foi então que comecei a me perguntar o que pode um arquivo dissidente?
6.
Em 2022, enquanto estou concluindo a dissertação de mestrado, resolvo que quero entrar no doutorado. Meu tema de pesquisa, dessa vez, é como a ideia de arquivo e de história aparecem na poesia contemporânea escrita por pessoas dissidentes.
Escrevo o projeto para o processo seletivo da Puc-Rio durante o segundo turno das eleições presidenciais. Me sentindo entre a vida e a morte, tenho muito pouco fôlego.
Quando chega perto da data da entrevista, a ansiedade, que vinha me rondando pelas bordas, irrompe. Depois de meses me esforçando para abafar o que sinto, agora tudo vem à tona. É uma crise tão desestruturante quanto aquela de 2019. Como naquele processo seletivo, dou conta de atravessar, de dar o meu melhor. Não sem um grande custo.
Essa repetição me faz suspeitar que a ansiedade talvez seja também uma maneira do corpo trazer de volta o passado, para que aquilo que aconteceu seja mais uma vez lembrado, ouvido, elaborado. Não sei. Mas toda vez que me encontro tentando sair de uma crise dessas me sinto obrigada a lembrar de onde eu vim.
7.
Em janeiro de 2022, Anielle Franco assume o cargo de Ministra da Igualdade Racial no terceiro governo do Presidente Lula. Sua posse é um marco histórico na luta por justiça e reparação para pessoas negras e indígenas no Brasil e ela conclui seu discurso lendo o poema “Vozes-Mulheres”, de Conceição Evaristo:
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
8.
Entre todas as perguntas, talvez a que mais me movimente seja essa:
Como as vozes das filhas e netas brasileiras estão produzindo uma forma insurgente de contar a história do nosso país?
Esse mês iniciei o doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na Puc-Rio. Essas notas contam um pouco do percurso e dos elementos da nossa imaginação pública (para usar um termo da teórica argentina Josefina Ludmer) que fazem parte da minha atual investigação sobre memória, arquivo e história na poesia brasileira contemporânea.
Laboratório de Escrita Recorrente
Desde janeiro deste ano, estou mediando o Laboratório de Escrita Recorrente um espaço de troca online para quem deseja escrever com regularidade. Este laboratório é uma verdadeira comunidade de escrita em que as participantes compartilham seus processos e projetos criativos. Nos encontros online semanais, com duração de duas horas, são debatidos textos de diferentes gêneros e a cada mês é enviado um dossiê de leituras para inspirar exercícios de escrita.
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taís, obrigada por esse compartilhamento da sua pesquisa e dos atravessamentos que foram moldando a forma da sua busca. iniciei agora mestrado em literatura e crítica literária na puc/sp e foi um alento te ler.
Obrigada por escrever, querida! Seu texto iluminou minhas sombras 💗