Uma escritora atravessa o extremo sul 🛣️
um relato da minha primeira parada no Arte da Palavra 2025
Começo o dia escrevendo sobre como há um índice secreto do passado que o remete à redenção. Não sei quantas vezes já li esse texto do Benjamin1 tentando entender alguma coisa e quando entendo é sempre um sentido que se aproxima enquanto escapa. No quarto de hotel, estou enfim conectando os pontos de algo que venho pensando há tempos sem saber como colocar em palavras: A ideia do passado cruzando em vias submersas, misteriosas, intangíveis, com o tempo que nos é contemporâneo.
Chego num ponto em que o pensamento desliza por mim e minha mão o persegue, a caneta tenta acompanhar. É quando a escrita salta. Em alta velocidade não tenho como saber se faço sentido, sigo até sentir que dei tudo de mim.
Quando acaba, eu já não tenho fôlego para insistir. Ainda faltam quatorze minutos no meu timer. Decido me ocupar do que é tangível, e-mails, contas, documentos para enviar, as roupas que precisam voltar para a mala, o quarto que em breve deve estar pronto para ser entregue.
Trinta minutos depois faço o check out, deixo minha mala na recepção e vou almoçar no mesmo restaurante dos outros dias. Sinto vontade de escutar música, especificamente o álbum de uma cantora que ouvi muito nos meus vinte anos. Caminho pela cidade, no extremo sul do Brasil, penso na minha pesquisa, quero acreditar que, enfim, estou acertando a montagem das peças de um ensaio crucial para seguir a tese. Mas a música me leva pra outro lugar, sob os meus pés parece vir à tona o que eu já não lembrava.
Há dez anos atrás, andei sozinha por ruas de cidadezinhas em um outro continente. Ontem fui ler na praça e me peguei vigilante, escolhi com cuidado em qual banco me sentar. O corpo lembra bem. Foi em um cenário parecido que fui assediada duas vezes por velhos que achavam que por algum motivo eu estaria interessada em me mudar para o país de merda deles. Mas não é só da vigilância que o corpo lembra. De repente estou andando junto com aquela que fui, o mesmo desprendimento de quem anda por andar, disposta a ver o que uma cidade estrangeira tem a oferecer, seus barulhos, letreiros de lojas, cores das calçadas, bichos, gostos.
Agora, a falta de destino é apenas temporária, às 16:50 tenho que embarcar em um ônibus até a outra cidade onde minha agenda de trabalho continua. Mas ainda são meio-dia e enquanto isso sou tão livre quanto a estrangeira que fui aos 25 anos atravessando fronteiras atrás de quem eu deveria me tornar. Cai uma chuva fininha e chego a sentir a melancolia de não ter outra vida se não essa em que vou me despedir de uma cidade sem nunca poder saber como é de fato viver aqui. Ao mesmo tempo em que só quero continuar, chegar em outro hotel, desfazer a mala e andar por ruas que só serão minhas por alguns dias. Até a hora de voltar para a casa. Continuar a vida que enfim se tornou minha.
Será que experimentar de novo a mesma liberdade, só que agora tendo um lugar para voltar, é dar a essa que fui algum tipo de redenção?
Este ano fui convidada para integrar o Arte da Palavra, maior circuito literário do Brasil. Promovido pelo Sesc nacional, esse projeto leva pessoas escritoras de todas as regiões do país para se conectarem com cidades de diferentes estados. Com isso, nós, escritories, temos a oportunidade de ampliar nosso campo de pessoas leitoras para além de nossas cidades de origem, ao mesmo tempo em que essas regiões recebem artistas de outros lugares, expandindo suas referências. É um projeto lindo (viva o sistema S!) e que admiro há tempos. Em 2019, mediei algumas conversas do circuito de autores que aconteceram no Rio e fiquei encantada com o potencial dessas trocas. Estar no circuito de criação literária, seis anos depois, é mais do que emocionante, um reconhecimento muito importante do que venho construindo como escritora e professora de escrita criativa.
Esse pequeno trecho de um diário de viagem foi escrito durante a minha primeira parada no circuito, no Rio Grande do Sul. Levei a oficina Escrever a memória para as cidades de Alegrete e Uruguaiana. Desenvolvida a partir da minha pesquisa de doutorado e a escrita do Expansão Marítima, essa oficina fala sobre formas de olhar o passado, investiga como as nossas memórias íntimas e ordinárias contam sobre a história do nosso país e instiga exercícios de escrita a partir de fotografias, receitas, diários. É uma experiência de ler e escrever coletivamente.
Mediar essa oficina presencialmente com grupos de pessoas de todas as idades foi intenso. De repente, uma pessoa que só vou encontrar ali, naquele momento, me conta uma história de sua avó de 102 anos, ou sobre a sua linda festa de quinze anos cujos registros foram para sempre perdidos, ou sobre o fim de um casamento que até hoje deixa marcas, como a lembrança do cheiro do feijão.
Tem algo de sagrado em compartilhar em voz alta aquilo que até então existia dentro de nós impronunciável, guardado entre as informações urgentes do dia a dia. Abrir esse espaço para estar presente para si mesme e outries é uma responsabilidade enorme. Escrevo agora da minha casa, me emocionando mais uma vez com a confiança e o carinho que recebi durante esses encontros.
Ao longo dos oitos dias de viagem pelo Rio Grande do Sul, passando por quatro hotéis, dois aeroportos, três rodoviárias e mais de vinte horas de estrada olhando pela primeira vez o pampa, lembrei de todo o percurso que me trouxe até lá, mas também encontrei espaço para estar só comigo, com quem me tornei agora.
Existe algo muito poderoso em chegar em um lugar desconhecido. Como a primeira folha em branco de um caderno novo.
Além das oficinas terem sido momentos muito especiais, essa primeira temporada do Arte da Palavra me deu a chance de passear com olhos de estrangeira, abrindo um outro tempo longe da rotina. Como consequência, senti muita vontade de escrever e preenchi quase um caderninho inteiro enquanto fazia minhas refeições sozinha em estabelecimentos em que provavelmente eu nunca mais vou voltar. Uma liberdade que há tempos eu não experimentava.
Enquanto voava do Rio de Janeiro até Porto Alegre, uma memória voltava com carinho, mas também com uma nova ponta de tristeza. Um ano e alguns meses depois daquela viagem dos 25 anos, eu ingressei na Faculdade de Letras da UFRJ. Tinha abandonado um mestrado em Filosofia, desistido da carreira acadêmica, mas não das palavras. Entrei na Letras pensando em me instrumentalizar para os ofícios de tradução e revisão e, talvez, me tornar professora de idiomas.
Ainda no primeiro semestre dessa segunda graduação, fui ao encontro de um desvio dessa rota. Em uma sala toda de vidro, perto da biblioteca, vi a divulgação para uma palestra sobre Ana Cristina César com Heloísa Texeira. Saí no meio de uma aula chatíssima de Inglês I e fui até lá. Foi a primeira vez que vi a Helô falando ao vivo. Fiquei impressionada com a sua presença. Lembro de como eu saí daquela palestra com a cabeça fervilhando, como se alguém tivesse me dado uma chave que eu sequer sabia que existia. No final conversamos um pouco e ela disse que eu deveria frequentar o Laboratório da Palavra no PACC-UFRJ. Foi nesse espaço, que comecei a dar oficinas de escrita junto com a
e que, por fim, me levou de volta à pesquisa e ao mestrado que realizei nesta mesma instituição.O encontro com a Helô, para mim, se confunde com a descoberta desse lugar, que mudou completamente a minha relação com a pesquisa, o ensino e a academia. Heloísa me apresentou a possibilidade de ser uma investigadora que se debruça vertiginosamente sobre o seu próprio tempo histórico tentando salvar de suas ruínas algumas luzes de vagalumes insistentes. Sei que a escritora, pesquisadora e professora que me tornei devem muito ao encontro com Helô, àquela sexta-feira em que, curiosa e animada, abri pela primeira vez as portas do PACC-UFRJ. Espero que no meu trabalho eu também possa ser ponte como ela foi para tantas e tantas pessoas.
Laboratórios de escrita online
Além de ministrar oficinas no Circuito de criação literária do Arte da Palavra, sigo coordenando o Laboratório de Escrita Recorrente que ocorre de forma contínua desde 2023. Vale lembrar que é possível se inscrever na lista de espera do Laboratório, mandando um e-mail para taisbravo@gmail.com ✨
Em junho, também vou oferecer uma nova edição online do Laboratório criativo: Investigando projetos de escrita. Nesse Laboratório de curta duração, as pessoas participantes são convidadas a realizar exercícios para observar, investigar e compreender com mais profundidade seus projetos criativos. O laboratório acontecerá nos dias 16 e 23 de junho das 19 às 21 horas e o valor da inscrição é R$135,00. Para mais informações, é só acessar o formulário de inscrição!
Estou falando sobre o texto Sobre o conceito de História de Walter Benjamin.
eu amo a taurina que se imagina morando em todas as cidadezinhas por onde passa <3
que feliz você nesse projeto, amiga, é mais do que merecido.
Tão bom ler que existem mulheres por aí vivendo de escrita!