Antes de entrar no chuveiro, se demora nos detalhes. Azulejos, vaso sanitário, pia e toalhas. Um quadro com uma ilustração delicada. Já começou a pensar no que não quer se esquecer. Acha bonito imaginar sua amiga em um banheiro todo cor de rosa. Um cômodo livre das coisas, do marido, do filho. Onde pode entrar e repetir gestos como um ritual. Deixar que a água leve preocupações ou traga boas ideias.
lembro-me dos tectos / por cima de todas as banheiras / em que estive lembro-me da textura dos tectos / das rachas / e das cores / e das lâmpadas. 1
Lembra também dos banheiros e das pessoas que escrevem sobre banheiros. Os gênios não precisam de intimidades tão próximas da sujeira. Não sabem como é delirar com um azulejo ou uma saboneteira. O universo pode caber num espaço tão despercebido. Com a toalha rosa na cabeça, entra no quarto. Tem uma porta de vidro que dá para uma sacada. Lá fora, a cidade. Toda vez que chega em um lugar novo se faz a mesma pergunta: como deve ser morar aqui?
Espia a vista. Como vai ser estar aqui? Muda a pergunta. Experimenta deixar um pouco de lado a vocação para criar casa. Quer testar lugares como quem pega uma roupa emprestada.
Sozinha, no quarto de sua amiga, onde derivados da palavra “amor” se espalham pela decoração, faz de conta que está em uma residência artística, cujo único exercício é dormir na cama de outra pessoa ao lado de seus objetos.
Só ao acordar você decide se algo mudou.
Em julho, passei um tempo viajando por Minas Gerais, me hospedando em casas de amigas e de pessoas desconhecidas. Dessa experiência, saiu a ideia do projeto de escrita Quartos, que ainda é só um rascunho, ou melhor, um exercício de escrita. Mas achei que seria legal compartilhar esse trecho inicial e junto com ele um poema de Flávia Péret, essa grande amiga mineira, que também fala sobre viagens, movimentos e instantes de presença:
Ida e volta
Enquanto você espera o ônibus na rodoviária, observa que as cadeiras vermelhas foram substituídas por assentos cinzas de metal frio e desconfortável e que o chão, sempre tão sujo, agora é limpo, irradia o brilho instável dos pisos encerados. Você viaja sempre sozinha, carrega a si mesma (seu brilho instável) e alguns objetos pessoais: os livros e as canetas, um caderno, a garrafinha de água mineral e as pastilhas de hortelã. Como se essas coisas fossem as atrações turísticas dessa viagem de um dia só. Porque você acredita que até as viagens mais curtas podem revelar alguma coisa retida pelo tempo: as cadeiras vermelhas, um pai 20 anos mais novo ou o céu cor-de-rosa na estrada. No fim do dia, você volta para casa com um poema, única prova material dos acontecimentos.
Poema de Flávia Péret, publicado no livro Mulher bomba e na Mulheres que Escrevem.
Oficina criativa: Fisgar pelo estômago
Acredito que quase tudo pode ser um disparador de escrita. Um cômodo, como um quarto ou um banheiro, mas também objetos, lugares, o cotidiano. A partir disso, a comida, com seus preparos, receitas e sensações, pode ser um tema para nortear leituras e exercícios de escrita. Foi assim que surgiu a Fisgar pelo estômago, minha nova oficina criativa.
Durante duas horas e meia, vamos ler e escrever a partir da comida, passeando por desejo, fartura, acidez, deleite, jejum, amargor. E investigando questões como: Quais histórias pode uma refeição contar? Como uma receita pode ser um arquivo de memória? É possível contar a personalidade de uma personagem pela sua lista de compras?
A oficina é online e acontecerá na segunda dia 26 de agosto das 19 às 21:30. Vem escrever comigo?
Trecho do poema Memória para Esther Greenwood de Adília Lopes
adoro reparar nas casas das pessoas. dizem tanto de quem mora nelas.