Ano passado dei uma oficina sobre Escrever em 1ª pessoa cujo objetivo era investigar como é possível usar o “eu” enquanto um espaço de ficção.
Queria falar sobre a oportunidade de criação que os gêneros associados à autobiografia oferecem, mostrar como cartas e diários podem ser plataformas de escrita para escamotear a verdade.
No entanto, logo percebi que a maioria das pessoas participantes compartilhavam uma mesma angústia: o receio da auto exposição que pode acompanhar a 1ª pessoa do singular.
Nesse caso, junto a esse medo, existia um evidente desejo de contar as próprias histórias, ou seja, de explorar um uso da 1ª pessoa que, como Annie Ernaux define em A Escrita como faca, o “‘eu’ do texto e o nome inscrito na capa do livro remetem à mesma pessoa”.
Apareceram perguntas como:
O que será que vão pensar? Eu posso contar essa história mesmo ela não sendo só minha? E se/quando minha famíliar ler isso?
Questões que remetem até um nível de preocupação ética que a não-ficção suscita. Porque, de fato, é importante refletir sobre até onde podemos ir, o que é viável de ser compartilhado publicamente, em especial, quando a história que desejamos escrever envolve a realidade de outras pessoas.
Atravessei esses conflitos enquanto escrevia Expansão Marítima, meu novo livro que será lançado no primeiro semestre deste ano pela Edições Macondo, pois nele escrevo sore a história de ser filha do meu pai.
Durante o processo de escrita me vi muitas vezes questionando o que de fato eu gostaria de expor da minha vida e, principalmente, da vida dos meus pais. O que me cabia contar?
O perigo dessas perguntas é que elas podem deter qualquer ritmo de escrita. Para não deixar que o meu desejo de investigar essa história fosse cerceado por esse medo da escrita em 1ºpessoa, escolhi passar um bom tempo escrevendo só para mim.
Rascunhei em muitos caderninhos. Tomei nota. Entendi que era, primeiro, um processo de descoberta meu que só depois seria lapidado até encontrar uma forma própria para ser compartilhado com outras pessoas.
Foi importante escrever sem pressa para publicar. E depois também levar um tempo considerável no processo de edição e montagem até criar uma história que é própria ao recorte de um livro e que não é exatamente a minha vida.
Esse é um outro ponto que essa oficina aborda: mesmo quando o “eu” da narrativa corresponde a pessoa que escreve o livro, há um processo de criação implícito no gesto dessa escrita.
Apenas pelo fato de escolher contar algo – seja esse fato verídico ou não – já se está abrindo uma distância da realidade e é por essa lacuna que a imaginação espreita.
“se trata menos de afirmar o “eu” ou de “encontrá-lo” e mais de perdê-lo em uma realidade mais ampla” (Annie Ernaux)
Essa perda do eu é um processo de criação através da escrita em 1º pessoa. É sempre impossível que o que escolhemos escrever, narrar e, em última instância, publicar, seja apenas uma réplica do que foi vivido.
Todo livro, poema, texto é um recorte limitado em um espaço tempo.
É preciso fazer escolhas para que o que foi vivido e percebido em uma determinada corporeidade seja compartilhado em uma história. Essas escolhas narrativas já representam uma enorme distância com o que foi vivido, esse material bruto feito massinha que ganha forma – e, por vezes, sentido – a partir de nossas mãos.
Fazer escolhas pode ser angustiante e conduzir aos receios que mencionei no início desse texto. Porém, para mim, saber que uma história só pode ser escrita – em 1ºpessoa ou não – porque alguém decide o que será contado, é ganhar um espaço de liberdade.
“Em comparação com a forma do romance dos meus primeiros anos, tenho a impressão de uma liberdade imensa e, naturalmente, terrível. Um horizonte se revelou no momento em que recusei a ficção, todas as possibilidades de forma se abriram para mim”. (Annie Ernaux)
Relembrar essa condição foi um exercício de me autorizar a seguir escrevendo meu livro, sabendo que essa é a minha versão, a narrativa que só as minhas escolhas podem criar.
Escrever sempre contém um espaço de imaginação. Nenhuma história é estática quando se inicia esse processo. A história que existe na sua cabeça começa a se transformar em outra no momento em que você arrisca situá-la na linguagem. Escolher uma palavra já é começar algo novo.
Quando você entende esse movimento, se torna mais fácil se libertar e se autorizar a fazer essas escolhas, sabendo que elas nunca darão conta da totalidade. As suas limitadas e transitórias palavras não vão contar toda a história da sua vida, da sua família ou de um amor. O que você escreve será sempre um recorte, uma parte.
Por mais que isso possa levar a um sentimento de frustração, esse limite é também um caminho criativo porque, ao se dar conta dessa limitação inescapável, você pode começar a radicalizar essas escolhas e transformar um acontecimento pessoal irreproduzível em uma história com corpo próprio.
Oficina criativa: Escrever em 1º pessoa
Em maio, vai acontecer mais uma edição da Oficina criativa: Escrever em 1º pessoa, agora em uma versão estendida com três encontros - justamente para ter mais tempo para falarmos das escritas autobiográficas ou autossociobiográficas que menciono neste texto.
Essa é uma oficina criativa que investiga formas de escrever em 1º pessoa transitando entre o diário, a carta e algo mais. Ao longo de três encontros, vamos ler textos que mobilizam esses gêneros e praticar exercícios de escrita. Quem se inscreve na oficina, além de participar dos encontros, recebe um dossiê de leitura com textos de autoras como Annie Ernaux, Ana Cristina César, Flávia Péret, Octavia Butler, Julia Raiz, Susan Sontag, Rafaela Miranda, entre outras.
A oficina será realizada via Google Meet, nas segundas do dia 13 ao 27 de maio das 19 às 21 horas.
As informações completas estão no Formulário de inscrição.
Bonus track:
Falando sobre escritas em 1º pessoa, publiquei na revista Rosa uma resenha sobre John, livro de Julia de Souza em que a autora compartilha memórias sobre a vida de seu pai. Leia aqui.
Enquanto estava escrevendo essa edição, a querida
publicou um texto maravilhoso sobre o medo e a escrita. Recomendo demais a leitura!Ainda sobre o medo, vale lembrar o conselho de Michaela Coel:
"Escreva a história que te dá medo, que te dá incertezas, que não é confortável. Eu te desafio. Em um mundo que nos seduz a navegar pela vida de outras pessoas para que possamos determinar melhor como nos sentimos sobre nós mesmos, e a sentir a necessidade de estarmos constantemente visíveis, pois hoje em dia visibilidade parece ser sinônimo de sucesso, não tenha medo de desaparecer – do mundo e de nós, por um tempo, e ver o que vem até você no silêncio."
acho curioso que a escrita em primeira pessoa remete sempre a essa confusão entre o "eu personagem" e o "eu autor". e mais ainda que isso ocorra também quando essas duas "entidades" têm gêneros diferentes.
Na última edição escrevi sobre Zélia Gattai, escritora memorialista que amo, e pensava em como esse gênero é subestimado. Ela mesma, eleita para integrar a Academia Brasileira de Letras, sofreu críticas por consideraram ser uma homenagem ao ex-marido Jorge Amado e não por sua obra.
Gostei como você reflete sobre a escrita em primeira pessoa sem medo como processo criativo. Acredito que muitas escritoras se identifiquem com narrativas não-ficcionais e se sintam mais autorizadas. Eu mesma me senti. E, num futuro próximo, sejam devidamente valorizadas.