Este ano decidi que o Laboratório de Escrita Recorrente será guiado por uma palavra maná a cada mês. Palavra maná é um conceito do Barthes para nomear um termo que funciona como um ímã puxando para perto uma série de elementos que constituem um projeto criativo. Conheci esse conceito não pelo Barthes, mas através da Flávia Péret e da Laura Cohen. O Dante Christófaro também apresenta essa ideia no seu livro “Poema do fim do mundo”:
quando comecei a escrever este texto
a flávia péret tinha me apresentado o conceito
de palavra-maná do roland barthes
a palavra-maná
é uma espécie de palavra chave
uma síntese de significado
para um corpo de trabalho
mas sinto que pode ser
também sobre uma vida
A palavra maná para o primeiro mês do ano foi “chão”. Minha ideia era evocar os sentidos de “origem”, “base”, “estrutura” que a palavra “chão” pode significar, já que janeiro é cheio de começos. Mas também pensando no chão como a terra em que cultivamos nossos alimentos ou o lugar por onde deixamos rastros dos nossos caminhos.
Enquanto fazia a pesquisa de quais materiais de leitura e exercícios criativos eu poderia propor a partir da palavra maná “chão”, li as plaquetes Música Maravilhosa do Cinema Vol. 2 e A superfície dos dias de Luiza Leite.
Em Música Maravilhosa do Cinema Vol. 2, Luiza escreve um longo poema a partir do seguinte programa performativo: “frequentar o shopping chão e pedir às pessoas para me venderem coisas que escolhessem. As conversas se deram no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, ao longo de outubro de 2018”. Para quem não conhece, o shopping chão é um mercado à céu aberto onde diversos objetos (geralmente aleatórios, mas às vezes organizados, por exemplo, há quem venda só roupas ou discos ou livros) são espalhados no chão. É uma prática bastante comum no Centro do Rio, especialmente na Lapa, Glória e bairros adjacentes como Catete e Largo do Machado. Dá para achar de tudo nesse mercado e é olhando com atenção para os seus objetos e também para as pessoas que os colocam à venda que Luiza escreve.
A mesma atenção é o motor (ou seria palavra maná?) do ensaio A superfície dos dias, publicada pelo Círculo de poemas em 2024, em que Luiza apresenta “[...] a importância do acesso e da atenção ao presente nos processos de criação”. Colocando em diálogo diferentes artistas como Laurie Anderson, Tamara Zamenszain, Laura Wittner, entre outres, Luiza faz uma defesa da escrita da poesia não como produto de uma inspiração que nos domina, mas como um gesto ativo de presença, de percepção. Como ela diz:
“Perceber é deixar-se ficar no tempo, demorar, permitir ser conduzido pelo que olhamos. A exigência da inspiração desaparece porque a poesia está em tudo”.
Em vez da inspiração, Luiza indica a prática da percepção enquanto um saber situado que abre caminho para os processos criativos:
“Para situar-se é preciso prestar atenção antes mesmo de começar a escrever”.
Essas leituras me fizeram pensar no “chão” como o lugar onde estamos, essa superfície a partir da qual nos movimentamos e escrevemos. Seguindo essa trilha, os primeiros exercícios do Laboratório de Escrita Recorrente em janeiro envolveram experiências para assentar qual é o chão da nossa escrita. Foi um mês para nos situar, prestar atenção no que nos constitui e que alimenta nossos projetos criativos.
Compartilho essa pergunta com você que lê essa newsletter, do que é feito o chão da sua escrita/vida?
Um dos exercícios do laboratório deste mês foi escolher objetos que dialogassem com nossos projetos de escritas.
Busco sempre colocar em prática os exercícios que proponho e, na última sexta, comentava com a
que tive dificuldade em encontrar objetos para representar meu atual projeto, uma ficção que se passa na Tijuca nos anos 1980, mais especificamente em 1985.A maioria dos objetos que encontrei na minha casa são, na verdade, livros, os escolhi mais pelas palavras que guardam do que pela materialidade em si. Sentia falta de algo que fosse como um objeto-maná, que só de olhar me aproximasse dessa história que ainda estou descobrindo.
No domingo, voltando da feira, passei em frente a igreja e vi o monte de papéis espalhados pelo chão. Em alguns dava pra ler o nome de um banco, pareciam antigos, um cartãozinho especificamente me chamou atenção. Pensei em abaixar para pegar, mas tinha me prometido parar com essa coisa de catar coisa do chão (por algum tempo muitas cartas de baralho ocuparam minha carteira).
Segui em frente, mas, depois, a curiosidade foi maior do que meu receio de ser julgada por alguém que me visse ali, vasculhando o chão sujo da Tijuca. Voltei e peguei o cartãozinho. Quando vi de perto, foi difícil de acreditar: era um calendário do ano de 1985.
Cursos, oficinas e experiências de escrita
No momento, as vagas para o Laboratório de Escrita Recorrente1 estão esgotadas, mas se você estiver buscando um curso de formação para escrever em 2025, tenho boas notícias: ainda há (poucas) vagas para a 3º edição do Curso para escrever prosa e poesia.
Com coordenação da
, o oferece oito módulos com um grupo docente diverso e maravilhoso, além de encontros de acompanhamento de projetos. Sou uma das professoras do curso e ministro um módulo sobre escrita de infâncias. Recomendo demais a experiência! É uma oportunidade valiosa estar em contato com uma turma de pessoas que desejam escrever ao longo de doze meses, muita coisa boa vem desses encontros.Além disso, em fevereiro estarei em Belo Horizonte, onde vou ministrar uma oficina presencial e participar do Concha no
.Nos dias 12 e 13 de fevereiro, ministro a oficina criativa Fisgar pelo estômago! São dois encontros com duração de duas horas para ler e escrever a partir da comida. Vão investigar como os preparos, alimentos, receitas, mercados guardam memórias, apresentam personagens, contam histórias.
A oficina acontece das 19h às 21h no Edifício Maletta e o valor é R$200. Você pode se inscrever mandando e-mail para estrategiasnarrativas@gmail.com.
Já o Concha é uma experiência de escuta para a escrita. As pessoas participantes enviam seus textos para uma leitura atenta que será realizada por mim e comentada no sábado dia 15 de fevereiro das 14h às 18h, também no Maletta. O valor é R$150,00 e as inscrições também podem ser feitas pelo e-mail estrategiasnarrativas@gmail.com.
O Laboratório de Escrita Recorrente é uma comunidade criativa idealizada e coordenada por mim desde 2023. Caso você queira conhecer mais sobre o Laboratório e se inscrever na nossa lista de espera, pode mandar e-mail para taisbravo@gmail.com.
Ha, eu amei demais o momento "não, chega de ficar catando coisa da rua" pra logo depois "vamo ser esquisita mesmo". dá pra gente fugir de muita coisa, mas da gente mesma é difícil. Às vezes sinto que o que a gente faz com a escrita, ou com processos criativos em geral, é abrir uns portais pra gente mesme depois se surpreender com o mundo.
o chão da minha escrita está sempre em movimento, enquanto meu corpo viaja, perambula, dança, brinca o carnaval
já sei qual é meu objeto!