Proteger a memória, cuidar da imaginação
Entre Polícia da memória, Notas ordinárias e uma pesquisa de doutorado
O primeiro romance que li em 2025 foi “Polícia da memória”. No livro de Yôko Ogawa (traduzido por Andrei Cunha), uma série de desaparecimentos são orquestrados por um estado repressor. Sem qualquer explicação, certas coisas precisam sumir: pássaros, rosas, calendários, frutas, fotografias, a lista pouco a pouco vai aumentando.
A história é narrada em primeira pessoa e, em momento algum, a narradora – e, consequentemente nós, pessoas leitoras – é informada sobre as motivações que levam esse Estado a apagar a existência de tantas coisas. Apesar dos sumiços parecem absurdos, ela segue sua rotina normalmente, ainda que essa normalidade seja permeada por uma constante incompreensão.
Quando um desaparecimento acontece, a coisa que é desaparecida não deixa apenas de existir no mundo com sua materialidade, a sua própria ideia é apagada, extinta da linguagem e da subjetividade das pessoas que vivem sob esse governo. Por isso o nome do romance remete à memória. O desaparecimento de uma coisa apaga qualquer rastro de sua existência, as pessoas não lembram mais qual era a função de um determinado objeto, seus nomes tornam-se palavras ocas desprendidas da comunicação.
Por exemplo, o pai da narradora, um pesquisador que estudava pássaros, quando esses animais são desaparecidos, subitamente as palavras e conhecimentos que ele passou anos alimentando também precisam desaparecer. A falta de vestígios faz com que ninguém seja capaz de se lembrar que algum dia existiram os pássaros. Esse vazio, por sua vez, alimenta a inércia, a perda é tão profunda que as pessoas começam a se acostumar com o fato de que de uma hora para outra algo pode sumir afinal, sem memória, será impossível sequer sentir falta desse objeto.
Alguns sumiços, porém, são piores do que outros. Um dos momentos mais intensos do livro é quando os romances precisam desaparecer. Em toda a cidade, a narradora, ela mesma uma romancista, vê pilhas e pilhas de livros em chamas:
A biblioteca seguia em chamas. Peguei um livro do chão e joguei lá embaixo. Ele abriu-se em dois, passou por cima do matagal e caiu em cheio nas chamas. Mais que uma queda, era como se ele tivesse realizado uma dança no ar […] De repente, lembrei-me de meu pai, sentado ali naquele lugar onde eu estava, mostrando-me alguma coisa através do binóculo. Respirei fundo. No mais recôndito do pântano do meu coração, senti uma pontada como uma fagulha.
- Um “pássaro”.
Eu me lembrei de que os pássaros também abriam as asas como aquele livro, e voavam para longe. No entanto, em seguida essa lembrança também pegou fogo, ardeu por um instante e desapareceu na escuridão.
No entanto, a perda da memória não acontece da mesma forma para todas as pessoas. Algumas simplesmente não se esquecem e seguem carregando na memória uma coleção de coisas que já não existem mais no mundo que vivem. É o caso da mãe da narradora, uma mulher que guardou clandestinamente os objetos que deveriam ser desaparecidos e entregues à polícia da memória. A primeira cena do romance é um momento em que mãe e filha estão explorando esse museu doméstico das coisas perdidas, a mãe tenta repassar essa herança ao compartilhar as suas lembranças com a filha.
Mas, aos poucos, as pessoas que não esquecem passam a ser vistas como perigosas. Elas são uma ameaça, pois são as únicas capazes de dizer que não há nada de normal nos desaparecimentos. Porque sentem falta, podem se rebelar. Forasteiras, elas lembram de como a vida era antes dos sumiços e, por isso, também são dotadas de imaginação, suspeitam que há um mundo de possibilidades longe das fronteiras impostas pela ditadura do esquecimento. Lembrar se torna, assim, uma forma de proteger a sua própria sensibilidade.
Confesso que foi um assustador ler esta distopia enquanto acompanhava as notícias das primeiras semanas do governo Trump, em especial, o pronunciamento de Mark Zuckerberg sobre as mudanças de políticas da Meta, que agora é uma plataforma declaradamente aliada à extrema direita fascista. É inegável que a bad das redes sociais vem batendo em muita gente que cresceu dentro da internet, mas agora se vê alimentando um pesadelo de proporções tenebrosas. Aqui mesmo nessa plataforma (que vale dizer, também tem um dono aliado aos valores de Trump, Musk e Zuckerbeg), muitas pessoas estão escrevendo sobre isso, compartilhando suas angústias, o incômodo com o vício em telas e a dificuldade de criar estratégias para recuperar o direito ao tédio, à concentração plena e à privacidade. Eu também compartilho dessa crise e, com essas notícias, me senti realmente triste e assustada com o poder que essas plataformas têm sobre nós, nossa memória, subjetividade e imaginação.
Como uma escritora que construiu sua rede de parcerias criativas através da internet e que usa essas plataformas para viabilizar seu trabalho e sustento financeiro, tenho gastado muito tempo me perguntando quais são as nossas alternativas.
Vale mesmo gastar meu tempo e energia para criar um conteúdo que vai sobreviver por um tempo curto e datado dentro de uma plataforma que ainda rouba nossos dados? Como cuidar da minha criatividade para que ela não seja moldada pelos temas e formatos pautados pelas redes sociais? O que eu posso fazer para proteger a minha sensibilidade?
Mas também me pergunto quais são os caminhos possíveis para criar outras redes de parcerias, trabalhos, trocas criativas e financeiras? Como garantir algum tipo de sustentabilidade para meu trabalho como artista, escritora e pesquisadora em um mundo em que esses ofícios valem cada vez menos?
Obviamente, eu não tenho respostas prontas, só uma insistência em não aceitar essa dita normalidade.
Outra leitura que terminei no início de 2025 foi “Notas ordinárias” da Christina Sharpe (traduzido por Jess Oliveira), um livro teórico em uma forma investigativa, que mais especula do que dá respostas. Em “No vestígio”, obra que traz a tese de doutorado de Sharpe, a autora apresenta o seu conceito de vigília como um trabalho de luto e sobrevivência que pessoas negras precisam fazer de forma incessante no contexto da diáspora. As notas, publicadas após “No vestígio”, me parecem ser a experiência dessa vigília em ação. Uma criação de ordem plástica fabricando imagens e ideias para atravessar essa vigília, mirando, entre a violência e a tristeza, em um cuidado com a beleza.
O cuidado é complicado, tem gênero e é indevidamente utilizado. Muitas vezes, é mobilizado para perpetrar violência, não para amenizá-la. E, no entanto, não posso abandoná-lo. Eu quero atos e relatos de cuidado como risco compartilhado e distribuído, como recusas em massa à vida insustentável, como rejeições totais ao futuro morto.
Quando li esse trecho em que Sharpe expõe seu desejo pelo cuidado, com toda a complexidade desse gesto, pensei que, talvez, seja isso que eu possa pedir a mim mesma nesse novo ano. Cuidado como atenção, como escolha pela sensibilidade. Cuidar como quem preza pela experiência de estar viva. Cuidado como antítese de um estado de dissociação em que pouco a pouco nosso corpo perde seu poder de sentir, lembrar e imaginar.
Dia desses, em uma conversa sobre o estado de precariedade em que se encontra a pesquisa e o ensino no Brasil e no mundo, meu orientador de doutorado soltou a frase: apesar de tudo, somos nós os zeladores da imaginação. Anotei isso no meu caderninho como um sopro de fôlego.
No meio dessa crise, em 2025 estou reforçando minha escolha de ser também alguém que cuida de palavras e ideias. Estou entrando no terceiro ano de doutorado, agora que terminei todas as disciplinas, é hora de me dedicar inteiramente a minha tese, um trabalho que solicita recolhimento e paciência. Uma escrita que não pode ser urgente, que pede tempo e silêncio, para investigar, testar, anotar como uma forma pensar, escrever, rasurar, reformular, reescrever até encontrar algum caminho para as hipóteses que me movimentam há alguns anos. Trata-se de um trabalho que vai na direção contrária a uma produtividade exata e linear, que precisa estar sempre vencendo uma briga contra o tempo e nossa própria energia.
Sinto que pesquisar é um mergulho que mexe no tempo, muda sua estrutura. E não é fácil ter fôlego para esse mergulho, mas é o que eu mais desejo em 2025. Esse é o meu gesto de zelar pela minha capacidade imaginativa.
Isso significa que possivelmente vou publicar menos por aqui ao longo deste ano. Pretendo manter uma média de um texto por mês. Minha decisão é para cuidar desse espaço como um lugar em que escrevo (e publico) porque sinto vontade e não porque tenho que manter uma periodicidade a qualquer custo. Gostaria de continuar compartilhando com vocês as coisas que me movem na escrita, inclusive, quero contar mais sobre minha pesquisa e o próprio doutorado, mas às vezes fico em dúvida se é algo que as pessoas querem de fato ler. Se esse tema te interessar, me conta nos comentários?
Aproveito também para indicar dois textos que vem me ajudando a atravessar essa bad das redes socias.
Esse da
:
E esse da
(que também me inspira muito como pesquisadora):
Com toda a certeza me interessa o seu percurso da escrita do doutorado e sobre sua tese!
Posta os processos da pesquisa sim!
E mais, vc pôs os problemas no começo e jeitos bonitos de lidar com eles no fim. Fiquei feliz com o texto, pq arrancou um pouco da angústia. Fico sentindo que, com ou sem donos fascistas, tudo é a indústria da distração, do golpe, pq no fim vc é roubado. Nem sei se tem como nos relacionarmos com as seduções de encontrar pessoas e coisas pela rede sem romper pelo menos um pouco, senão toda, a nossa força. Porque é sobre ter força, né, pra zelar pela imaginação.
Bom demais. Arrasa na tese