“Quero, antes de tudo, conservar a minha personalidade, ser o que eu me sinto bem em ser; ser aquilo que a minha consciência, o meu espírito, aceitam como justo. Espero que você tenha compreendido o sentido das minhas palavras e que, portanto, esteja menos decepcionado do que demonstrou. Creio que agora dormirei em paz, pois descortinar para você o meu espírito tal como ele é; claro que cheio de defeitos, mas com a virtude de querer fazer aquilo que está ao alcance de suas possibilidades”1.
É assim que, em 1954, Lélia Gonzalez conclui uma carta destinada ao seu irmão na qual pede que ele apoie sua decisão de cursar filosofia em vez de se dedicar à faculdade de medicina, destino que parece ser requisitado por sua família. Para sustentar esse “não”, Lélia escreve de forma honesta e singela sobre quem ela de fato deseja ser, compartilhando com o irmão quais são os seus sonhos, e as medidas práticas que ela prevê como necessárias para realizá-los.
Há uma vulnerabilidade profunda nesse relato, pois trata-se de alguém disposta a olhar com honestidade para a própria vida, compreendendo quais desejos são inegociáveis, mas também todo esforço e possíveis perdas que essas escolhas implicam. Há aí a coragem de quem defende seus sonhos, ao mesmo tempo, que tem uma consciência sóbria das próprias limitações.
É emocionante ver Lélia acolhendo sua humanidade, reconhecendo-se imperfeita, aceitando frustrar as expectativas familiares. Lélia defende o seu futuro, sabendo que, talvez, ele não represente o que os outros entendem como uma trajetória de sucesso, mas que ainda é o caminho que lhe cabe. Essa decisão mostra um conhecimento profundo de si mesma, de quais são suas motivações, preferências, ímpeto. Ao não duvidar desses indícios, ela traça, como uma pioneira, um caminho único só seu e que justamente por isso a torna grandiosa. Hoje sabemos que as escolhas de Lélia, aquele “não” para a medicina, transformaram não só sua vida, mas a história do Brasil. Pode-se dizer que é um desfecho feliz, de um destino que se cria a cada escolha, apesar de somente ela saber o quanto custaram cada um desses passos, o quanto de angústia, tristeza, revolta cabe dentro da felicidade e do sucesso. Ainda assim, em 1954, Lélia não poderia saber onde a busca pelo próprio desejo a levaria, tudo que podia fazer era imaginar um futuro que lhe parecia apropriado e lançar-se na incerteza da vida com um salto de fé.
Quando li esta carta, estava passando por uma crise. Tentando sozinha tomar uma decisão que poderia ou não abrir um caminho completamente novo na minha vida. Esses instantes sempre me despertam um estado de alerta. É algo que existe, a cada instante, mas aprendemos a não perceber. Os hábitos organizam os dias, a sobrevivência pede tanta coisa. É fácil passar meses ou toda uma vida sem olhar de perto para essa fenda: o que nos constitui é feito de escolhas, às vezes grandes, a maioria pequenas, todas incontornáveis. Mesmo que você mude de ideia, volte atrás, esses passos deixam marcas, levam tempo. A gente nunca sabe qual dessas escolhas pequenininhas podem nos conduzir a uma virada decisiva.
Lendo a carta de Lélia dentro do metrô sentia essa fenda se abrir como uma boca. Suas palavras me davam um norte enquanto eu, categórica, teimava em ver o mundo em linha reta, dividindo meus passos entre a escolha correta e a escolha errada, a escolha que me conduziria até meu destino e a escolha que me faria perder tudo em uma vertiginosa queda.
A frase “Quero, antes de tudo, conservar a minha personalidade, ser o que eu me sinto bem em ser [...]” chegou como se dentro da boca saísse um mensageiro. Os olhos instantaneamente molhados, porque é simples e difícil assim a vida. Nenhum tempo separado de onde estou, nenhum destino à espera de ser encontrado. Só alguns indícios de possíveis rotas, entre meus desejos, sentimentos, intuições.
Decidi que minha única meta de 2025 vem desse poema da Nikki Giovanni traduzido pela Desirée dos Santos em Você lembrará seus nomes2:
Quantas histórias a comida pode contar?
Uma das minhas escolhas para 2025 é ministrar mais oficinas presenciais e em fevereiro estarei de volta ao Estratégias Narrativas em Belo Horizonte com a oficina criativa Fisgar pelo estômago 🥘🍴
Essa é uma oficina para ler e escrever a partir da comida. A comida é política, está na nossa vida diária. É através dos preparos e das mesas que criamos vínculos, contamos histórias.
Os sabores nunca vêm sozinhos. Cada prato é acompanhado por uma sensação: desejo, fartura, acidez, deleite, jejum, amargor. Quais memórias pode uma refeição contar?
Nos dias 12 e 13 de fevereiro, vamos ler e escrever a partir da comida, praticando exercícios de escrita criativa e passeando por textos de Carol Bensimon, Laura Cohen, Michelle Zauner, Anelis Assumpção, entre outres autores.
Vamo? Espero por você que me lê aí de BH! A inscrição pode ser feita através do formulário ou do e-mail: estrategiasnarrativas@gmail.com
Esta carta foi publicada no livro Lélia Gonzalez: um retrato, escrito por Sueli Carneiro e publicado pela Zahar em 2024.
"Os hábitos organizam os dias, a sobrevivência pede tanta coisa." Quanta beleza e pensares tem essas palavras, obrigada Taís. Comecei o ano lendo "Meditando na cozinha" da Sônia Hirsh uma alegria quando a escrita é a comida se misturam, não estou em BH mas tenho certeza que será uma oficina maravilhosa, bom ano Taís <3
Já anotei num caderno essa tua frase: "o que nos constitui é feito de escolhas, às vezes grandes, a maioria pequenas, todas incontornáveis".
Obrigada por compartilhar esse diálogo, Taís. O momento pelo qual estou passando, estava pedindo essa leitura. Decisões e escolhas decisivas são mt difíceis. Mas como vc mesma demonstrou, nós temos nossas mensageiras e guias. Salve Lélia, salve Nikki!