Na noite antes da viagem, tiro um jogo de tarô pra mim. Uma das cartas é o Hierofante ou o Papa. Eu gosto muito desse arcano maior, principalmente na sua interpretação no tarô mitológico. Aprendi em um vídeo da Juliana Bernardo que o Hierofante é alguém que foi ferido, e que, sem chance de cura, aprende a conviver com ela e a cuidar dos outros. Não acredito em uma relação direta entre arte e cura, mas penso que, para mim, escrever pode ser também um jeito de manejar as feridas, aprender a fazer um bom uso delas.
Na carta, o hierofante é uma figura que fala para um público, duas ou mais pessoas estão de frente para ele. Aprendizagem, ensino, troca, transmutação e espiritualidade fazem parte de um imaginário atribuído a essa carta. Elementos que também me são caros, que fazem parte da minha relação com a literatura. Interpreto como um bom sinal. Junto com as outras cartas (muitas de ouros), este arcano parece lembrar de que há uma motivação específica em fazer o que eu faço: não é só a materialidade, o sustento, é também algo que me alimenta em um nível de força vital.
Na quinta à noite, sentada em um banco dentro de uma roda falo algo parecido com isso e um arrepio percorre meu corpo: Se eu deixo de criar, se eu não estou compartilhando esse processo com outras pessoas, aprendendo e ensinando, eu minguo, perco minha força.
Essa fala surgiu na conversa com
e sobre a escrita de newsletters na Escreva, garota. Quando cheguei na casa, em cima da hora, porque tinha acabado de sair de um sarau, a Ana começava a se apresentar e depois que nós, as convidadas para realizar aquela conversa, contamos quem somos e o que fazemos, todas as outras pessoas que participavam daquela roda fizeram o mesmo.Esse pequeno gesto já mudou tudo para mim. De repente, não estávamos à frente ou no centro, nosso lugar era dentro da roda, constituindo uma pequena e temporária comunidade. A escuta e a fala ganham outro sentido nesse formato.
Terminei minha participação nesse encontro falando justamente sobre isso: A Flip é um lugar que convoca a existência de um ou de vários centros, que nos estimula a aparecer, se sobressair, se colocar em evidência. Mas escrever ou criar é uma ação que acontece muitas vezes no escuro, na incerteza, em silêncio. E se isso demanda uma solidão, persistir nesse trabalho só é possível em um esforço coletivo, com o amparo de comunidades criativas, como a que criamos por apenas algumas horas naquela noite de chuva em Paraty.
Nessa hora eu também me arrepiei, como se o corpo quisesse demarcar: é isso, é por isso que você escreve, é essa troca que alimenta seu trabalho
No dia seguinte, ao lado de
, e na Casa Libre, falo também sobre o comprometimento, o empenho contínuo na ação de escrever que se sobrepõem – e precisa se sobrepor – ao status de escritora.Estou aqui com o microfone na mão para depois poder imaginar coisas sozinha em casa.
Solto essa frase e depois fico com ela na cabeça. Porque é um tema frequente o quanto a performance de ser escritora parece ser uma prerrogativa para que alguém que escreve possa ser lida e ter alguma mínima garantia de remuneração e sustentabilidade de seu trabalho criativo.
Estar com o microfone na mão, em um evento na Flip ou em um reel do Instagram ou em um podcast do spotify, faz parte do trabalho de ser uma escritora contemporânea. É algo que aceito e acho que faço bem, mas tento não me esquecer de que não é o que realmente me interessa, não é o motivo pelo qual escrevo e não deveria me tomar mais tempo do que a ação, o compromisso em escrever.
Mas nos tempos em que todo mundo foi obrigado a se tornar um pouco social media de si mesmo a exposição do trabalho parece ser quase mais importante do que o trabalho em questão.
(A)parecer se sobrepõe a fazer. Mas escrever é uma ação e esse verbo vem antes da identidade escritora.
Como a gente escapa dessa lógica em um trabalho já tão precarizado (isso quando de fato reconhecido como trabalho) como a arte?
Eu não faço a menor a ideia.
Uma estratégia tem sido não me deixar ser seduzida pelo microfone, o palco, o lugar no centro. Entender que preciso desse lugar para a continuidade do meu trabalho, mas que o meu trabalho, a escrita, não depende de nada disso. E, então, fazer um bom aproveito. Por exemplo, transformar esse púlpito em uma roda, não me contentar com o lugar estático de escritora, lembrar que escrever vai ser sempre esse risco, no escuro, sem garantia.
A Flip 2024 foi maravilhosa. Posso dizer que também foi cansativa, intensa e com doses de fritação e ansiedade. Mas não posso reclamar.
Em 2023, andei pela Flip distribuindo uma zine, uma produção improvisada e caseira feita na xerox debaixo do meu prédio, com textos do Expansão Marítima (antes até do livro ter esse título). Minha intenção com essa zine era colocar em movimento o desejo de publicar meu livro em 2024, acreditava que levar uma parte dele na Flip era abrir caminho para isso. Deu certo, o livro foi publicado pela casa editorial que eu queria e recebeu um cuidado primoroso.
Chegar em Paraty em 2024 com o Expansão Marítima em mãos foi uma alegria enorme (e ainda vendi todos os exemplares que levei!). Colocar um livro no mundo e trabalhar para que ele chegue nas pessoas, seja lido, é um rolê. Um processo longo, de alto investimento (emocional, físico e financeiro). Estar nessa última Flip era imprescindível para mim, porque eu quero trabalhar pelo meu livro, pela minha escrita.
Voltei feliz, satisfeita, sentindo que fiz um bom trabalho. E para recompensar esse esforço, resolvi me dar um tempo para…trabalhar, mas a parte invisível, em silêncio, escrevendo sozinha na minha casa. Estou me permitindo passar um período longe do Instagram e também ficarei sem dar oficinas nos últimos meses do ano. O objetivo é ter tempo e disponibilidade para o meu maior projeto de escrita no momento, a minha tese de doutorado (mas também quero me divertir com uns outros projetos de ficção que andam ocupando meus caderninhos).
Esse movimento de me recolher um pouco faz parte de uma compreensão de que para continuar fazendo meu trabalho preciso cuidar da minha criatividade, respeitar meus limites, saber me alimentar antes de continuar acompanhando o processo de criação de outras pessoas nos meus laboratórios e oficinas.
Mas nem tudo é trabalho, ou talvez até seja, mas a parte do trabalho que alimenta o espírito também.
No domingo, antes de ir embora, ocupávamos algumas mesas no Thai Brasil. Ana (Squilanti) e eu dividíamos nossos pedidos para poder experimentar mais de um prato do restaurante. Ao nosso lado, pessoas que tínhamos acabado de conhecer nos últimos dias. E então fazíamos as contas de quantas relações tinham se iniciado justamente naquela Festa literária, como a nossa própria amizade. Ali, em torno de comidas deliciosas, já lembrávamos com carinho das mesas, festas e encontros dessa edição, antecipando o que ainda vai se tornar memória e imaginando como será nossas vidas no próximo ano.
A melhor parte da Flip, sem dúvida, é esse clima de excursão de férias dos nerds da literatura em que pessoas de diferentes estados se reúnem por alguns dias naquele centro e experienciam um tanto de coisas juntas. Voltei para casa feliz de reencontrar tantos amores e ainda fazer novas amizades. No fim, realmente acredito que escrever é uma forma de, a partir de uma solidão, criar pontes, formar comunidade, encontrar outras pessoas, e algumas dessas pessoas borram os limites e transformam a nossa vida-escrita. E é também por esses encontros que eu escrevo.
a Flip é mágica, né? "nos estimula a aparecer, se sobressair, se colocar em evidência", É ISSO!
sei do papel primordial que a escrita tem em minha vida, mas às vezes, entre um relatório e um release institucional, ele se perde de vista. daí vem a Flip e me faz lembrar de novo, com uma facilidade que nem sem explicar. sempre que vou, volto com mais vida dentro de mim.
espero que tenha bons momentos de silêncio nesse restinho de ano! :)
Bom demais te ouvir e estar ali na roda também. A vida é muito generosa por provocar esses encontros 🧡