Como cuidar da criatividade em tempos de austeridade?
um ensaio sobre exaustão, magia e autocuidado a partir do filme "O serviço de entregas da Kiki"*
Ultimamente tenho me sentido como a Kiki do “O serviço de entregas da Kiki”, desconectada da minha magia.
A história desse filme do Estúdio Ghibli é a de uma jovem bruxa de 13 anos que, seguindo uma antiga tradição, precisa deixar seu ambiente familiar para passar um ano treinando seus poderes mágicos em um território desconhecido.
Durante essa espécie de intercâmbio mágico, Kiki encontra alguns desafios materiais, afinal, ela precisa se virar sozinha para encontrar um lugar para morar, pagar por sua alimentação, além de realizar todos os cuidados de manutenção da sua vida e a de seu gato JiJi. Em busca de um trabalho remunerado para bancar sua subsistência, Kiki tem a ideia de realizar entregas usando a sua vassoura como meio de transporte.
Ao longo do filme, acompanhamos uma série de contratempos e aventuras envolvendo essas entregas — e quem trabalha como freelancer, pode facilmente se reconhecer nesses percalços. Kiki se envolve emocionalmente com as demandas de cada um de seus clientes e muitas vezes se esforça um pouco além do necessário para realizar um bom trabalho.
Em algum momento, ela chega a um nível de exaustão e não consegue mais se conectar em interações sociais, adoece e se vê perdendo seus poderes mágicos. Primeiro, ela perde a capacidade de se comunicar com Jiji e depois a habilidade de voar.
Quem a ajuda a lidar com esse momento difícil é Ursula, uma artista que acolhe Kiki em sua cabana na floresta. Durante esse breve retiro, Kiki se permite descansar e se nutre de sua aliança com Ursula. Essa é uma das minhas passagens preferidas do filme, não só pelo companheirismo entre essas duas personagens femininas, mas porque Ursula lembra da necessidade de buscar inspiração e também de aprender a descansar, a ter momentos de pausa. Ela fala sobre a arte e a magia como ofícios que demandam insistência, prática e cuidado.
Nos últimos meses, me vi um pouco como Kiki, exaurida e desconectada do meu poder mágico.
Durante esse ano, me vi trabalhando como nunca e, se por um lado, me vejo satisfeita com meu crescimento profissional, há uma estafa natural em trabalhar como autônoma em meio a um cenário de austeridade e crise. Para além do cansaço natural do excesso de trabalho, há um considerável desgaste emocional ao tentar sobreviver no capitalismo tardio, sem direitos trabalhistas e em meio a um cenário de precariedade e luto.
Tenho me perguntado muito sobre como me manter criativa nessa conjuntura, não como uma tentativa de me manter em uma produtividade desenfreada, mas, sim, em busca de me sentir viva.
Se vivemos em um mundo desencantado, como não nos perder de nossa alma e daquilo que nos permite ter um olhar mágico para a nossa existência terrena? Como cultivar essa magia e nutrir uma conexão amorosa com nós mesmas e com o mundo?
Essas não são perguntas retóricas, são orientações práticas para seguir sobrevivendo. Já citei algumas várias vezes as palavras de Audre Lorde, porque é preciso sempre lembrar que a poesia não é um luxo.
A poesia como uma feitiçaria, como um uso mágico da linguagem que nos permite acessar nossos sentimentos e transmutá-los em ideias e ações, é um poder vital para resistir a um sistema de opressões que nos quer esgotadas e silenciadas.
Tentar se manter criativa em tempos austeros, pode parecer um absurdo ou uma impossibilidade, mas talvez seja o que, no fim do dia, vai sustentar um fio de esperança e, principalmente, de vigor. E é preciso se manter vigorosa, desejante, viva para atravessar esses tempos.
Lidando com minha exaustão, percebi que retomar contato com a minha magia, isto é, com um uso da linguagem não necessariamente produtivo (ou lucrativo) é uma necessidade vital.
Desconectada dessa prática e da minha criatividade, sou incapaz de conceber um propósito para a minha vida e sem esse propósito não há esperança, energia, ímpeto. Percebi isso conversando, ouvindo e me conectando com outras mulheres, como a conversa que tive com a Adelaide Ivanóva para a revista Estúdio 50 em que ela compartilha uma aprendizagem da cabala:
E uma das coisas que aprendi nesse curso era: quando a gente tem uma pressão do mundo exterior, a primeira coisa da qual a ente abre não, geralmente, é a coisa que conecta a gente com o divino maravilhoso. Então tinha isso de bater na tecla de sempre injetar beleza no dia a dia, não se desconectar do divino, seja o divino a sua fé, a sua prática religiosa, ou o exercício poético, artístico, o contato com aquilo que lhe leva para outro lugar. Apesar de ter aprendido isso nessa fase, ainda é um exercício muito difícil para mim não perder de vista a importância. Porque quando a gente não está em contato com a nossa poesia, com a nossa conexão, a gente adoece.
Como Kiki, estou recebendo a ajuda de outras mulheres que são artistas, fazedoras, feiticeiras, cada uma delas em trânsito com diferentes práticas mágicas, entre a escrita, o tarô, a aromaterapia, passando sempre por uma escuta ativa e a costura das palavras em conversas nutritivas. Essas têm sido as minhas saídas.
Cada uma de nós reinventa todos os dias possíveis respostas para viver e manter viva a nossa magia. Nem todos os dias são bons, nem todas as semanas ou meses são vivos como a nossa potência pede.
Às vezes só nos resta atravessar, furar a onda ou se manter boiando, é o possível, o suficiente. Mas também existem — e vão continuar existindo — os dias de sol, de mergulho e de entrega profunda e são nesses dias que escrevemos, como uma feitiçaria, um outro futuro.
Laboratório criativo : Investigando projetos de escrita
Em 2022, percebi que podia contribuir para que mais pessoas cuidassem de sua criatividade a partir dos meus conhecimentos como escritora, preparadora de textos e professora de escrita.
Constatei que minhas diferentes atuações profissionais me davam algumas ferramentas para auxiliar pessoas que escrevem a compreender seus próprios interesses e preferências em seus processos criativos e, em consequência, a ganhar mais consciência e autonomia na hora de escrever.
Assim surgiu o Laboratório criativo: Investigando projetos de escrita que em seus três encontros online rotinas, procedimentos e obsessões de escrita a partir da leitura de autoras como Adília Lopes, Octavia Butler, Aline Valek e Gloria Anzaldúa.
A 6º edição do Laboratório criativo acontece agora em julho e as inscrições estão abertas aqui.
As vagas são limitadas para que todo mundo possa participar à vontade, então, corre para garantir a sua!
*Este ensaio já foi publicado anteriormente em minha antiga newsletter. Mas como, em pleno fim de período, me vi chegando perto do burnout e mais uma vez precisando me lembrar dos ensinamentos de Kiki, achei que seria interessante esse vale a pena ler de novo.
Lançamento Uma terra casa tem esse nome algum, de Rafaela Miranda
Para quem for do Rio de Janeiro, deixo o convite para o lançamento do livro Uma terra casa tem esse nome algum, de Rafaela Miranda, na sexta dia 07 de julho na livraria Travessa de Botafogo.
Estou muito feliz de participar da mesa de lançamento junto com a autora e a Heleine Fernandes. Acho que será uma noite linda! Cheguem lá ❤️
Seus textos têm sido um alento. Parabéns e obrigada!
eu sou tão absurdamente apaixonada por esse filme e por toda a mensagem que ele traz. muito bom relembrar através de um post tão maravilhosamente escrito!