A vida não cabe em uma lista de resoluções
ou ter coragem para escutar o que a angústia conta
1.
Nos últimos tempos comecei a ficar meio noiada com a minha idade. Não no sentido de querer controlar o efeito do tempo na minha aparência ou de perder traços de juventude. Não me incomoda a ideia de pouco a pouco deixar de ser uma pessoa jovem. A nóia ou, para ser mais exata, a angústia é: Quem eu vou ser quando cruzar esses marcos? Que tipo de vida eu vou levar? Como será a minha rotina? Quem serão as pessoas do meu círculo social?
Essas dúvidas têm um contexto: Sou uma pessoa que escolhe construir uma vida que não passa pela centralidade de um casamento e da construção de uma família, no sentido tradicional do termo. E que, além disso, não tem uma profissão convencional. Sou escritora, pesquisadora e professora de escrita criativa, não dá muito bem para prever um plano de carreira para esses ofícios, no máximo, alguns marcos, e a certeza de trabalhar constante sem qualquer garantia de previsibilidade.
Mas, veja bem, isso aqui não é uma lamentação (poderia ser, mas esse não é ainda um texto sobre política pública). Eu escolhi esses caminhos, são o fundamento da vida que eu desejo. E quero continuar fazendo essas escolhas, porém, é deste ponto que penso no futuro e me pergunto: Como envelhecer com qualidade de vida quando sua existência está fora da maioria dos supostos marcos de segurança e estabilidade?
2.
Não é um nóia com a idade, entendo, é uma angústia com o futuro.
3.
É claro que eu não tenho resposta para essas questões. Porém, ouvir essa angústia me fez entender quais mecanismos eu andei criando para tampar esse buraco.
Quando eu era adolescente e ouvia Mutantes cantando sobre as pessoas da sala de jantar, tudo que queria era não me tornar uma adulta que tem uma vida pré-moldada à minha espera, uma existência que consiste em dar “check” em uma lista de compromissos e conquistas.
Bem, pode-se dizer que eu consegui escapar disso. Mas nem tanto assim da lista. Se o conteúdo é diferente, a prática, no entanto, é bem parecida. Me dei conta que andei trocando os marcadores de uma vida adulta bem-sucedida tradicionalmente para uma outra série de marcos, baseados na minha ideia de sucesso, que precisam ser conquistados quase a qualquer custo.
Até aí, tudo bem, não é? Não tem nada de errado em ter sonhos, objetivos, ambição. Mas, no apagar das luzes de 2024, percebi que nessa minha lista tem algo além dessas motivações: é uma forma de forjar estrutura, previsibilidade, controle.
Inventar uma lista de conquistas ou metas (quase todas profissionais) é uma maneira eficiente de confundir a satisfação de ser competente e qualificada com bem-estar emocional, como se ser útil fosse o único propósito de estar viva. Em outras palavras, o sentido da nossa existência se confunde com uma performance de produtividade que pouco tem a ver com desfrutar de uma vida boa, principalmente se pensarmos que felicidade e satisfação nunca são estados totais ou plenos, muito menos calculáveis1.
A lista também é um método de antecipação, você está lá, e não aqui, no que a sua vida de agora tem de fato a te oferecer – e também, sempre, a te negar – , ou seja, é um movimento que impede qualquer fruição com um pouco mais de presença.
Se eu deixar a minha lista de metas de lado, quantos buracos aparecem? O que eu faço hoje só porque eu quero e não porque preciso?
Fora desse tipo muito específico de satisfação, onde está meu prazer, meus sonhos, meu desejo?

4.
De repente, o futuro ficou meio perto demais. Entendi que as angústias falam mais sobre modos de vida. O que eu estou fazendo agora que vai não só, talvez, me dar um pouco de estabilidade daqui a uns anos mais também felicidade neste instante?
5.
Este ano algo aconteceu. Os trabalhos que vim fazendo em silêncio, quietinha dentro da minha casa, vieram à tona. Saíram da terra. Além do livro Expansão Marítima e da zine Receitas para o fim, publiquei parte da minha pesquisa de mestrado em um dos capítulos do livro Literatura escrita por mulheres – um texto que escrevi no final de 2022 e que só agora foi lançado. Também vi pela primeira vez meu nome no cinema, assinando a pesquisa do filme Insubmissas produzido pela Daza Filmes, um projeto que ajudei a criar desde seus primórdios, lá em 2018. Entre outras conquistas, que foram verdadeiros marcos profissionais para mim. Foi um ano em que trabalhei muito. Porque era importante demais que esse momento de colocar esses projetos no mundo fosse manejado com cuidado.
Sinto que vivi com integridade essas conquistas, me sentindo feliz, mas também um tanto surtada, elaborando sentimentos ambíguos, revisitando quem eu fui, me reatualizando comigo mesma e minha trajetória. Se alguns pontos foram arrematados e agora sei qual repertório carrego, a trama continua em aberto com todos os seus buracos.
Quando eu tinha vinte anos, era meio obcecada pela biografia do Leminski e tatuei no braço o verso: viver não tem cura.
Já achei extremamente cafona essa escolha, mas sei muito bem de onde ela veio. E até entendo por que aquela garota achava importante não se esquecer disso.
6.
Aquilo que a gente vive em um ano não cabe em uma lista de resoluções.
7.
Já comentei nas últimas edições desta newsletter, que tirei os dois últimos meses de 2024 para diminuir meu ritmo de trabalho. Voltei da Flip me sentindo na beira do burnoutinho ou, em bom português, do piripaque e me forcei a parar um pouco. Mas o que eu senti nos primeiros dias livres (semanas, para ser sincera) foi...angústia.
Longe da lista de datas de trabalhos, prazos a cumprir e metas que precisam ser acompanhadas diariamente, minha vida parecia meio molenga, inconsistente. O tempo escorrendo sem um desejo para me organizar. As perguntas do início desse texto só surgiram porque me dei esse tempo de pausa. Fazer contato com essa angústia, foi bastante difícil. Mas, em vez de apenas sufocá-la com mais trabalho e distrações, escolhi suportar um pouquinho, me permiti sentir, ou seja, estar presente na minha vida, em sua incompletude e beleza.
Entre novembro e dezembro, habitei um limbo com muitos sentimentos, em que me vi soltando um pouco a mão da estrutura que inventei para me segurar na instabilidade da minha vida. Porque, afinal, se fui eu mesma que inventei, posso sempre escolher afrouxar os pinos, desmontar tudo, começar de novo.
Experimentar essa angústia abriu novas perguntas e a possibilidade de imaginar cenários ainda desconhecidos, mesmo sabendo que a materialidade da vida vai sempre transformar essas projeções em alguma outra coisa, o que, por sua vez, vai me movimentar de novo, entre a insatisfação e o desejo, sem cura.
É com essa nóia que me despeço de 2024, angustiada, porque viva.
Que em 2025 a gente tenha coragem para ouvir nossas angústias e recalcular nossas rotas. E que o tempo seja gentil com os caminhos que nossa imaginação ainda vai traçar!
Vagas abertas para o Laboratório de Escrita Recorrente
Desde 2023, coordeno o Laboratório de Escrita Recorrente, um espaço criativo em que as pessoas participantes se encontram semanalmente para compartilhar seus projetos de escrita.
Como contei nesta edição, o Lab recorrente estava de férias, mas em janeiro retomamos às atividades e com novas vagas abertas!
Como o número de participantes é limitado (para garantir uma boa interação), restam apenas três vagas para pessoas inscritas pagantes e duas bolsas, destinadas a pessoas negras, indígenas e/ou trans. Caso você tenha interesse em conhecer mais sobre o Laboratório de escrita recorrente, as informações para inscrição estão aqui!
Vem escrever com a gente 🤍
taí algo que meu antigo psicanalista falava bastante, aprender a ouvir nossas angústias. é um exercício e tanto.
eu fico pensando muito que essa angústia toda de escolher viver uma vida fora dos moldes tradicionais e de repente se ver sem referências ou marcos que possam nos tranquilizar de que não estamos à deriva rodando em círculos é o maior motivo pelo qual muita gente desfaz essa escolha conforme o caminho vai se apertando lá na frente. não é nada simples, tem que sustentar muito desconforto da incerteza.