Hoje depois de me ouvir falar sobre desejos e limites uma amiga disse: Parece que você se colocou na sua coluna. Enquanto ela explicava o sentido da expressão, imaginava meu esqueleto, dentro de mim, vértebra por vértebra.
Achei curioso esse comentário, porque há algumas semanas andei com um nó nas costas. Só passou depois que decidi falar. Pareceu um gesto impulsivo, mas apenas as pessoas mais ruminantes sabem quanto tempo leva para organizar uma decisão. Depois disso, acordei sem dor.
Antes de encontrar essa amiga, semanas depois da dor nas costas, tomei, enfim, coragem para arrumar os livros. A estante passou os últimos meses revirada. Enquanto ouvia sobre estar encaixada na minha coluna também me vinha essa imagem das prateleiras em ordem, livro por livro, vértebra por vértebra.
Lembro do dia que comprei a estante. Algo já estava dando errado. Com frequência me pegava sentindo um desconforto. Deixava essa sensação num canto, porque era difícil pensar em como seria escolher não ter você na minha vida.
Então, fazia um monte de coisas para me distrair do que eu sabia, sabendo inclusive que só estava fazendo hora para postergar o encontro com um sentimento que eu não poderia evitar. Alguma coisa que estava lá dentro de mim, propositalmente revirada, entre um tanto de palavras, mágoas e dúvidas.
O dia que a estante chegou aqui em casa, eu estava ansiosa. Uma inquietação difícil de discernir. Pulsão de vida ou pulsão de morte?
Às vezes, quero tanta coisa que mal consigo sair de casa. Por isso, faço listas, quebro em pedaços, e deixo o mais importante para depois. Antes, tento consertar, botar em ordem, gerenciar.
Tem pouco tempo que me dei conta de que estar viva deve ser mais do que se ocupar de uma manutenção infinita da existência.
Enfim, naquele dia não tinha jeito. Eu precisava resolver a questão dos livros espalhados pela casa, pegando poeira. Precisava me ocupar. Fazer uma lista do que faltava para a minha vida dar certo. Evitar pensar em você. Fingir que eu não sabia que tinha de novo deixado de dizer tantas coisas, toda a minha verdade.
Resolver. Se até o fim do dia eu conseguisse resolver algo, qualquer um dos itens da minha imensa lista, eu poderia ficar um pouco mais satisfeita, ainda que dificilmente tranquila.
Medi o pequeno espaço entre a mesa de comer e a mesa de escrever, cujas funções costumam se misturar. Andei até a rua cheia de lojas de móveis. Olhei muitos modelos até encontrar o tamanho perfeito. Estreita, mas alta e sólida. Madeira de verdade e não MDF. Não sei muito bem qual será meu futuro, mas imaginei que aquela estante poderia ficar comigo, me acompanhar para onde quer que eu fosse. Negociei o valor, no pix era mais barato e, no mesmo dia, me entregaram.
A satisfação de resolver me invadia enquanto admirava o espaço daquelas prateleiras. Um vazio, ao menos, a ser ocupado.
Tirei uma foto para te mostrar. Mas você nunca chegou a ver de perto como eu organizei os livros.
Uma vez eu amei uma pessoa que não me entendia. Ou pelo menos não enxergava uma parte de mim. Para ela, ter muitos livros dentro de casa era um luxo. Mais ainda, uma ostentação desnecessária, afinal, as bibliotecas existem para isso. Não esqueço de uma tarde em que eu tentava ouvir uma entrevista com uma escritora que admiro mas a sua voz cortava o som, criticando a enorme estante ao fundo da tela. Me interrompia, sem me ver.
Acho que eu sequer tentei explicar que um livro pode ser um atalho para quem fomos ou quem ainda desejamos ser. Uma coisa que ultrapassa a materialidade do objeto e nos ocupa em um nível invisível.
Naquela época eu não tinha a chave de nenhuma casa, meu quarto não tinha uma estante, só um pequeno módulo, onde os poucos livros que levei comigo disputavam espaço.
Comprar a estante foi uma aposta em um projeto de vida em que eu caibo, com tudo que me pertence.
Os livros que vivem agora na minha estante são livros que migraram de várias casas até essa, ou são livros que adquiri, ganhei, comprei, nessa outra vida, a minha. Cada um, aqueles que já foram lidos ou os que permanecem em espera, me constituem, são rotas, máquinas do tempo, esperança.
Hoje, olho para minha estante, como olho para minha coluna. Estou aqui, vértebra por vértebra, livro por livro.
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“ um livro pode ser um atalho para quem fomos ou quem ainda desejamos ser” 🙏🏽🙏🏽 agora pronto, vou ter que comprar uma estante tb 😅😅😍
apaixonado na forma que você escreve