1.
Eu faço parte do grupo de pessoas que precisa de papel e caneta para escrever. Não é que eu seja totalmente analógica, é claro que também escrevo no computador e até no celular (principalmente no grupo de WhatsApp que tenho comigo mesma), mas essas ferramentas têm usos e funções distintas do papel. Para começar a escrever, preciso dos meus caderninhos.
Não sei se dá para definir qual estágio da escrita é o mais crítico. Começo, meio ou fim, todos têm suas questões. Independente do momento em que você se encontra em um projeto de escrita, há sempre a possibilidade de empacar e não saber para onde seguir, o medo de não estar fazendo sentido, o risco de perder a mão e acabar com um amontoado de palavras, ou de ideias, que não dizem nada.
Mas, para mim, o começo é um pouco mais delicado. Quando me vejo com um desejo novo de escrita, sinto que preciso manejar com cuidado. Parece que carrego uma criança no colo e preciso segurá-la com calma para que não desperte antes da hora. Ou que estou preparando ovos mexidos cremosos que me pedem uma atenção contínua ao movimento das mãos e a temperatura do fogo. Se eu parar de mexer, ou se a frigideira esquentar demais, vou perder a textura que eu quero.
Me dá um certo nervoso, mas é bom.
Para lidar com as dificuldades que cada momento da escrita apresenta, tento criar as minhas estratégias. Os começos me pedem atenção, abertura e calma. Por isso, preciso dos cadernos.
Vejo os cadernos como espaços de experimentação. Mais íntimos e privados do que as telas, nos meus caderninhos tenho liberdade para escrever como quem ainda está só rascunhando, testando, sem a pretensão de chegar em uma forma específica. Ali é onde os textos podem viver em processo, inacabados, rabiscados, interrompidos.
Acho que o papel é mais amigável para o que ainda não tem forma, o que ainda está sendo descoberto, quando a escrita é mais minha e precisa ser assim para continuar em movimento.
2.
Para escrever meu último livro, o Expansão Marítima, precisei por um bom tempo me concentrar nos cadernos. Escrever, anotar, rabiscar, e deixar esses pedaços.
Antes de ser um livro, o Expansão Marítima era um projeto de escrita. Eu queria investigar o que significa ser filha. Inicialmente, chamei essa investigação de História das Filhas. Mas, conforme a escrita/pesquisa avançava, entendi que, na verdade, o que me interessava era contar a história de ser filha do meu pai.
Durante esse período em que convivi com o tema da minha investigação (ser filha) até chegar em qual seria o assunto do livro (ser filha do meu pai), eu só escrevi anotações nos meus cadernos. Rascunhos de poemas, perguntas, citações de outras pessoas. E, depois que compreendi melhor meu interesse, ainda assim, continuei escrevendo à mão, em muitos cadernos ao longo de três anos (comecei a escrever o livro em 2020 e terminei em 2023).
Precisei desse tempo sozinha com o papel, porque não me parecia (e não foi mesmo) nada simples entender como escrever sobre a minha relação com meu pai. Eu tive muitas dúvidas durante o processo: É válido contar essa história? Para quê e para quem eu quero escrever? Onde isso vai chegar? Como começa e onde termina a história que o livro vai mostrar? Qual é o recorte para elaborar essas memórias pessoais?
Para não ser paralisada por essas dúvidas, eu precisava começar a escrever sem pensar em publicar, sem ter ideia de um formato, sem considerar a leitura de outras pessoas. Olhar para essa relação curiosa com o que ainda poderia ser descoberto, elaborado, imaginado.
Antes das telas, dos documentos de Word e de uma formatação, eu desejava o espaço silencioso de uma página de papel guardada dentro de um caderno.
Até que veio o momento de trabalhar a partir desses cadernos. Revisitando um por um, passando à limpo, editando. Um trabalho de reescrita a partir do qual fui entendo a forma e o recorte do livro, que agora não era mais algo que escrevia só para mim, mas sim uma construção de linguagem que seria entregue ao desconhecido, à leitura de outras pessoas.
Para modelar ou talhar esse livro foi necessário, primeiro, aquele material bruto escrito à mão, espalhado em blocos, cadernos, papel de todo tipo.
Entre fazer um filme e um livro há muitas diferenças, mas gosto de pensar que os cadernos foram o momento de captura, quando acumulei imagens para depois montá-las, decupando todo o material até encontrar o fio narrativo, o ritmo e a melhor estrutura para apresentar essa história.
4.
Na escrita acadêmica também sou uma dependente do papel. No momento estou começando a escrever minha tese de doutorado e meu processo de criação é um tanto sistemático, envolve muitas etapas, várias dessas precisam ser necessariamente feitas à mão, em papéis distintos, do meu cadernão até folhas soltas e post-its. Fichar textos, criar mapas mentais, rascunhar, se permitir seguir o fluxo do texto até entender se está na direção correta. Às vezes queria que fosse mais rápido e menos trabalhoso, mas eu sei que é esse processo que funciona para mim, então confio e sigo escrevendo e acumulando papéis.
5.
Talvez eu seja só antiquada, mas, para mim, acima de tudo, tem o prazer. Eu sinto muito prazer no gesto de escrever com a mão, com uma caneta ou lápis em punho, sentindo a textura do papel. É uma experiência sensorial que me norteia, me constitui. Tenho certeza que se um dia eu fosse parar em um reality show tipo BBB, ia ser punida por escrever com dedo em superfícies. Porque eu realmente não sei viver sem esse hábito e além de textos literário e acadêmicos, diariamente escrevo à mão pensamentos soltos, lista de tarefas ou de mercado, todo tipo de banalidade.
6.
Essa newsletter não é patrocinada por nenhuma marca de cadernos (embora eu ADORARIA que fosse esse o caso), não estou ganhando nada para fazer toda essa apologia ao papel e, óbvio, acredito verdadeiramente que cada pessoa tem seu próprio funcionamento, suas próprias manias de escrita e de criação. O importante é conhecer o que dá certo pra gente, para, então, ganhar consciência e se apropriar desse processo. Minha intenção aqui foi só mostrar como eu faço e qual é a imensa função afetiva do papel naquilo que escrevo.
E você, qual ferramenta é imprescindível para sua escrita? Se quiser, me conta nos comentários, eu vou gostar de saber!
Receitas para o fim: Minha nova publicação!
Em setembro, chega ao mundo mais um projeto de escrita que começou nos meus caderninhos!
Receitas para o fim nasceu como um projeto paralelo à escrita do Expansão Marítima e seu tema é comida e fossa. Para elaborar o fim de um amor, revisitei receitas que marcaram essa relação, descobrindo a minha maneira de fazer e contar essas comidas e histórias.
Leia um trecho do Receitas para o fim que já foi publicado na Trajetos de escrita:
Receitas para o fim vai ser uma zine publicada pela PSS - Publication Studio São Paulo e seu lançamento no Rio de Janeiro será no dia 21/09, um sábado, no evento Fetiche ou poema no Paraíso trans a partir das 17 horas. Se você estiver pela cidade, vou amar te encontrar no Astros e Estrelas, para gente ler uns textos e cantar umas músicas sofridas no karaokê.
Adquira seu exemplar de Expansão Marítima
Se você ficou com vontade de ler meu novo livro, depois de conhecer um pouco mais sobre o seu processo de escrita, pode adquirir seu exemplar autografado preenchendo este formulário com suas informações e o comprovante do pagamento.
Comprando o Expansão Marítima direto comigo, você apoia meu trabalho como escritora (além de receber um exemplar autografado <3).
acho muito legal ler sobre os diferentes processos. eu comecei a usar o computador muito cedo e sou bastante habituado com o teclado e a edição digital, acabo me sentindo um pouco amarrado escrevendo com caneta. Acabo rabiscando tudo, fica uma bagunça. Hahaha Adorei seu texto! Obrigado!🙏
time dos mil cadernos <3