Um território chamado mãe
Acordar na casa da minha mãe com frequência era ser acordada.
Primeiro, vinha o som do rádio, depois o barulho de todos os utensílios domésticos e, por último, sua voz acompanhando o refrão. Com frequência, errava ou inventava as letras, mas isso nunca a impedia de continuar cantando.
Dependendo da música, eu poderia adivinhar o seu humor.
Ivete Sangalo, Toni Braxton, Symple Red, Whitney Houston: dias bons.
Renato Russo cantando em italiano: cuidado.
Kenny G: crise.
Os sons eram indícios do que eu poderia esperar. Eu me preparava como podia.
Não era uma possibilidade desviar da sua energia. Tomar café da manhã, uma primeira forma de contágio.
*
Ninguém me ensinou com tanta precisão o significado da palavra “ambiguidade”.
Minha mãe é uma mulher elástica capaz de se espalhar por tudo enquanto vive contida.
Uma vez na análise, eu tentei contar algo sobre minha relação com minha mãe, mas acabei falando sobre a escola da minha mãe.
Sou filha de educadores. Minha mãe, depois de concluir o Curso Normal, abriu uma creche na garagem dos seus pais. Antes de ser uma educadora, minha mãe foi uma cuidadora. Uma mulher cuidando das crianças de outras mulheres de um mesmo bairro. Ela cursou pedagogia numa faculdade privada e, aos poucos, transformou a creche em uma escola. Quem construiu o prédio em que existiu a escola da minha mãe, foi seu pai. O nome da escola era o nome dele.
Crescendo eu mal via uma distinção entre minha mãe e aquela instituição.
Ela parecia estar em todos os cantos. Onipresente, cuidando de tudo. Minha mãe se confundia com o próprio edifício. Era uma estrutura sólida em seu incansável deslocamento.
*
Passei os últimos anos escrevendo sobre meu pai, sobre ser filha do meu pai.
Talvez porque meu pai exista em uma superfície através da qual eu consiga me enxergar, enquanto, com empenho, também sou capaz de vê-lo.
Minha mãe parece ter dado um jeito de entrar dentro dos meus ossos. Olhar o que de mim veio dela pede um tempo de outra natureza.
Quinze de outubro é uma data importante para mim. Talvez porque, de alguma forma, eu tenha confundido a data com a própria existência dos meus pais. Costumo dizer que ser filha de professores me constitui como uma marca incontornável. Neste dia 15 quero agradecer e celebrar a todes que trabalham para produzir e compartilhar conhecimento, principalmente quem faz isso em busca de ampliar as nossas possibilidades de liberdade. Vocês são importantes 🤍
"Minha mãe é uma mulher elástica capaz de se espalhar por tudo enquanto vive contida." Que bonito isso, Taís! Adorei o texto <3
Que texto lindo. Reconheci minha mãe um pouco aí também, cantando pela casa e se fazendo onipresente nos cuidados aos outros.