Em um sábado em que não sei muito bem o que fazer comigo mesma, vou até a feira de antiguidades da Praça XV em busca de fotografias. Invento essa ideia como um dever de casa. Eu me lembro da minha mãe cortando jornais e revistas para meus trabalhos escolares. Frequentemente ela se empolgava e fazia as tarefas por mim, ainda mais quando envolviam maquetes ou qualquer habilidade manual. Ficava na cara que uma criança não tinha feito aquilo sozinha.
Como se eu tivesse que apresentar uma pesquisa em sala de aula saio atrás de fotos de duas categorias: Retratos de famílias e fotos do mar. São os dois temas que ando obsessiva. O trunfo seria encontrar tudo em uma foto só. Em meu arquivo pessoal encontro muitas fotos da minha família na praia. Mas quero olhar o que não conheço. Quero imaginar como é a história de outras filhas.
Então vou até a Praça XV em um sábado abafado e nublado no Rio de Janeiro movida por esse objetivo. Me sinto um pouquinho esquisita revirando as memórias alheias. Um senhor para ao meu lado, dá uma olhada na caixa cheia de retratos e resmunga “deus me livre, prefiro olhar as minhas”. Sim, há algo estranho – para alguns até macabro – em adquirir fotos de desconhecidos que talvez já estejam até mortos. Não dá pra saber como aquelas fotos foram parar ali. Dá pra imaginar vários tipos de perda. É incômodo pensar que talvez os nossos registros íntimos um dia vaguem por aí sem o cuidado de um herdeiro.
Eu, no entanto, aceito a ideia de uma linhagem forjada pelo acaso. Sou eu quem cuido dessas memórias desconhecidas agora. Não sei se dei sorte ou se as fotos de famílias são as mais comuns entre as antiguidades perdidas, mas encontro muitas. E são lindas. O moço da banquinha me dá um desconto. Levo 9 fotos por 15 reais. Sete são de famílias, uma é de uma moça fazendo pose em um jardim e a outra de um grupo de três amigas sorrindo em uma varanda.
Tinha esquecido de como gosto de fotografias. Gosto do que há de misterioso no poder de captar um momento que sobrevive muito tempo depois da realidade que registra. Uma das minhas fotógrafas preferidas, a Vivian Maier, é um mistério em si. Não se sabe ao certo quem ela foi e porque fotografava compulsivamente a cidade e as suas pessoas. Seu enorme arquivo foi encontrado depois de sua morte e tornou-se mundialmente famoso. Não dá nem pra saber se ela desejava mesmo que essas fotos fossem encontradas ou vistas. Quando era viva, talvez, o hábito de fotografar desconhecidos nas ruas fosse só um hobby estranho sem qualquer pretensão artística. Ou não. Vai saber.
Me pergunto quanta gente tida como estranha não deve circular em torno de uma feira de antiguidades. O quanto de mistério um evento como esse guarda. De onde vem tanta quinquilharia? Por que o ser humano inventa tudo isso? Até onde a linguagem vai?
Depois da minha primeira e bem-sucedida parada, vou até mais uma banquinha de fotos. Ainda falta uma imagem do mar. Encontro, por sorte, uma foto em preto e branco da praia de Ipanema em que vemos guarda sóis estampados, algumas ambulantes trabalhando e alguns corpos deitados pegando sol. Uma imagem quase perfeita para ilustrar uma memória que só tive acesso a partir da fala do meu pai.
Com a tarefa pronta, me permito passear um pouquinho, experimento óculos escuros, compro duas blusinhas e uma miniatura brinde do Kinder Ovo igualzinha a minha favorita de infância. Não gasto mais do que 15 reais.
Quando já estou indo embora dou de cara com um mimeógrafo exposto como uma obra de arte contemporânea. Um mimeógrafo por 80 reais. Em um instante sou transportada para a escola da minha mãe, o cheiro forte de álcool, os braços de uma professora girando a máquina para fazer cópias de uma prova com capa de personagem da Disney. Entre algum lugar da minha infância e a Praça XV, fico pensando no mimeógrafo. No mecanismo do mimeógrafo, em todos os mecanismos que os humanos inventaram para reproduzir cópias. Fico pensando em como a ideia da cópia nos assombra desde sempre, desde a reprodução de um instante em um verso ou em uma fotografia até as inscrições que carregamos só por sermos filhos dos nossos pais. Tiro uma foto do mimeógrafo. Uma foto que logo será perdida no excesso de imagens da nuvem. E sinto vontade de ligar para a minha mãe.
Este texto foi publicado originalmente em 2022, quando estava escrevendo meu último livro, Expansão Marítima. Hoje a feira da Praça XV anda bem mais cheia e hypada, mas tem tempo que amo esse passeio aqui no Rio. Como passei as últimas semanas gastando todos meus neurônios para escrever um artigo acadêmico, quis trazer essa crônica para um vale a pena ler de novo. Mas em breve teremos mais resenhas e ensaios inéditos por aqui.
Aproveito para compartilhar esse texto da Bianca Zampier escrito a partir de uma fotografia encontrada na Praça XV.
Encontrar esse texto foi como passear por uma feira de antiguidades e me deparar com uma preciosidade. Ele me pegou pela mão, me conduzindo por uma imensidão de vielas, onde as sensações estavam lá, conhecidas e apalpadas. Amo antiguidades. E as fotografias antigas, então? Que luxo!
O final com o desejo surgido de ligar para a mãe... 🩷