1.
Estou com o coração partido quando entro naquela sala. Odeio admitir isso. Há tantos motivos para estar com o coração partido agora. Mas estou com o coração partido porque entro sozinha naquela sala.
Deixei para o último final de semana porque queria acreditar que poderia ser diferente. Tinha a amiga da Brena. Minhas próprias amigas. Mas isso também não aconteceu. Estão todas escrevendo artigos, fazendo freelas ou deprimidas. Verão Maníaco. Vou sozinha.
Deixo para ir na exposição Tempo Expandido em seu último final de semana também porque, como Chantal Akerman, gosto muito do meu quarto. Procrastino as saídas até não ter mais jeito. Mas quando saio, saio. Me entrego ao lado de fora.
Vi no YouTube que Chantal amava as linhas da cidade, as plataformas, as vias expressas, as avenidas. Ela usa as linhas para guiar seus enquadramentos. E deixa que as coisas aconteçam. Dá tempo. Dá outra dimensão ao tempo. Os corpos não dominam as telas. Estão nelas como tantas outras coisas.
Quero deixar que você saia do enquadramento. Enquanto me sinto como a câmera que a cada vez diminui mais seu percurso. Deixando de ser panorâmica para se tornar algo que vai e volta em um curto espaço. O tempo se enchendo de ansiedade e tudo que acontece é uma mulher deitada em sua cama.
Mas isso foi antes. Agora, Verão Maníaco.
2.
Estou sozinha nessa sala. Ao meu lado duas adolescentes colecionam stories. As imagens se repetem sem significar nada.
São três telas onde uma parte do que pode ser visto é mostrada, recortada, saturada de outra forma.
Toda vez que vou em exposições tenho medo de não entender. De não sentir nada. De me sentir burra. São só imagens que não significam nada. Tento estar ali, bem onde estou. Meu celular vibra. Recebo uma mensagem. Mando uma mensagem, mas não para a pessoa que me escreveu. Tento evitar meu celular. Tento não tirar fotos. Agora são seis telas. A minha, a das meninas e as de Chantal. Volto. Tento estar ali.
Fico sozinha anônima no escuro gelado do Oi Futuro. Vejo o mesmo céu ser transformado até ser algo que posso inventar. De repente não entendo, mas estou ali.
Me pergunto de quantas formas posso manipular essas imagens até a narrativa se transformar em outra. Ou até não restar narrativa alguma.
3.
Alguns dias depois vou presenciar algo.
Nesse dia, em vez de andar do metrô até a Estelita, pego o 422. Queria evitar esse gasto. O terceiro transporte público até o trabalho. Sem integração. R$3,95 e logo será R$4,05. Aceito o custo porque quero chegar um pouco menos atrasada e não tão suada. Sinto que estou sempre atrasada e suada.
Estava ali no 422 já atrasada secando o suor no ar condicionado que só dá vazão nos ônibus que circulam pela Zona Sul e nem sempre. Tentando evitar meu telefone. Tentando não ir de um lugar ao outro sem me dar conta do que estou fazendo. Quando vejo essa senhora entre as muitas senhorinhas brancas que circulam por Laranjeiras. Aquela senhora velhinha demais para andar sozinha vestida com meias e roupas quentes demais para andar no Rio de Janeiro se movendo como um CD arranhado.
Reparo nela e vejo a representação física de todo meu mal estar. Acontece muito rápido. Estou olhando para ela de dentro do 422. Não sei se sinto pena, preocupação ou curiosidade. Quando, de repente, em um dos passos algo acontece. Ela não consegue. Deve ser um pedaço mínimo de calçada esburacada ou um lapso em que ela não consegue mais dar conta. Ela se desequilibra. Eu levo um primeiro susto. Ela não tem forças para se estabilizar. Já estou apavorada. Ela começa a cair. Sei que os tombos são súbitos. Mas o que eu vejo não é. Vai acontecendo. Um frame depois do outro enquanto estou do outro lado do vidro do 422. Ela vai caindo e não tem como não tem braços não tem forças ela vai cair de cara no chão. Não consigo acreditar que estou presenciando isso e não há o que eu possa fazer do outro lado do 422. A queda segue. Quando acho que acabou, vejo um pingo de sangue indo da boca até a mão. Ela parece tão surpresa quanto eu.
Então algo acontece, é como se o ônibus despertasse. Alguém grita. A senhorinha caiu. Não sou só eu que testemunho. Eu sou a que não sabe o que fazer com o que testemunha. Alguém grita. Alguém sai. Um homem e uma mulher. Eles levantam a senhorinha. A mulher faz um sinal de deixa comigo. Eles falam algo. Ele volta ao ônibus e ela fica para ajudar.
Meu ponto é uma esquina depois. Quando desço não me importo mais se estou atrasada ou se faz muito calor.
Meu celular me mostra tragédias imensamente maiores.
E me sinto arrasada porque hoje vi do outro lado da janela do 422 uma senhorinha caindo de cara no chão.
4.
Eu não sei exatamente de que modo presenciar (essa cena) causa um impacto. O que muda quando você vê algo?
5.
E o que muda quando você registra o que vê?
6.
Em Notes from home ela explora esse enquadramento da cidade. Lê as cartas que recebe da mãe durante o período em que está em Nova York. Enquanto mostra as paisagens da cidade. O filme se passa do lado de fora. A câmera fica estática enquanto a paisagem se move. Os carros e as pessoas atravessam o enquadramento. Nada acontece. Embora seja todo do lado de fora, as imagens são de alguém que não está totalmente lá. Enquadrar algo, um espaço, uma pessoa, é se colocar do lado de fora? É delimitar ou borrar as fronteiras?
Mesmo quando ela está longe do quarto ainda sinto a mesma frequência. A mesma mulher inquieta, seja deitada na cama, seja espiando pela janela.
Tenho que confessar.
Minha parte preferida de Je, tu, il, elle não é a cena de sexo.
É o momento em que vemos a porta aberta e depois os carros avançando.
7.
Também tive um verão do lado de dentro. Passava quase todo o tempo no quarto. Ressentida com a sequência de dias bonitos. Sem saber como me deslocar em uma cidade em que só parece possível existir dentro de um estilo de vida (leve, feliz, solar). Quando saía continuava dentro de algum lugar. Sentava nos bares carregando um escafandro na cabeça.
8.
As imagens de Verão Maníaco me levam de volta a essa posição. Alguém que está do lado de fora mas vê o mundo do lado de dentro. Alguém que não participa e por isso enxerga de outro lugar.
09.
Penso que esse olhar vem de um lugar de perda ou de inadequação. Maria Rita Kehl situa o melancólico como alguém que perde seu lugar social e que pode usar essa perda para reinventar o mundo a partir de um gesto criativo. Sinto que nós, as melancólicas, só podemos olhar a mesma cidade e contar as perdas. Talvez porque nós nunca tenhamos esquecido a estrutura ficcional das fronteiras. Dizem que o lugar mais perigoso para uma mulher é sua própria casa.
10.
Imagino se você também viu as bandeiras do Brasil espalhadas por todos os andares daquele prédio.
11.
Ainda no 422, agora na direção contrária. Vejo duas meninas e um menino (são duas mulheres e um homem mas o modo como brincam e riem faz com que naquele momento caibam melhor nesses termos). Uma delas está especialmente sorridente. Eles se implicam. Dá pra sentir, sem entender o que dizem, o tom de deboche. Ele ri muito. Estão se despedindo. Ele não para de sorrir. Ela também não. Talvez a outra amiga esteja se sentindo sobrando e meio de saco cheio. Eles seguem, enfim, seus caminhos opostos. Mas logo olham para trás. Ele grita alguma coisa. Ela provoca de volta. Relutam a partida. Sem nunca parar de sorrir. Vejo que é ela quem olha para trás pela última vez. Imagino os comentários da amiga que fica de fora.
Me pergunto se mais alguém reparou.
12.
Enquanto escrevo esse ensaio (?), sou furtada. Junto com o celular vão centenas de imagens de momentos que foram importantes o suficiente para serem fotografados.
Me sinto sem chão, mas não sei exatamente do que deveria sentir falta.
13.
Quanto tinha 14 anos, minha melhor amiga morava em Brasília. Ela acompanhava de perto minhas histórias sem nunca conhecer o rosto de seus personagens. Naquela época, o “manda uma foto dele/dela” demandava um processo de várias etapas: tirar uma foto, revelar o filme, escanear e, enfim, enviar pelo MSN ou email. Me lembro da minha euforia quando Roberto, o menino que gostava, apareceu no meu aniversário tema Anos 70. Enfim, uma desculpa perfeita. Não lembro se minha amiga chegou a ver a foto. Mas guardo a imagem nítida em minha cabeça:
Roberto fantasiado de hippie deitado nas enormes almofadas da casa da minha avó que decoravam a festa.
14.
às vezes, quando olho os stories, me sinto uma intrusa.
15.
Carnaval sem imagens com um celular que não aguenta ficar quatro horas ligado. Deixo o escafandro em casa. Não noto nada. Nenhum recorte. Mantenho o laço social com fotos que tiram por mim.
Quando acaba resta muito pouco.
Se esquecer, agora, é melhor do que ter história para contar.
16.
Acho que anotei todas essas coisas porque não poderia te contar. Queria escrever sobre o olhar de Chantal Akerman. Queria ensaiar um texto sobre o olhar. Queria pensar a relação que estabeleço com as imagens que faço com o meu celular.
E era sua falta e a cidade que me atravessavam.
17.
Escrever para ter algo o que fazer com as mãos.
Para estar sozinha.
Para poder não transformar o que sinto em algo.
18.
Naquele dia, na verdade, a solidão era uma escolha também. Apesar do coração partido, apesar da perda nunca explícita de um laço ainda menos explícito, estava feliz. Andava com o escafandro por perto, mas debaixo do braço. Just in case, vai que. Era um dia bonito e não tão quente. Na noite anterior tinha beijado todas as minhas amigas. O motorista parou fora do ponto só para mim. Por muito pouco podia sentir que essa ainda é a minha cidade. Andava negociando os tempos das nossas histórias. Notando tudo que me invade e ignora entre as esquinas que foram e ainda são minhas. Quando saio do Oi Futuro cai uma chuva de verão. O Largo do Machado todo de um tom de sépia dourado.
Um momento perfeito. E do lado de fora, também estava sozinha.
Você não vê. Faço um story.
Tento compartilhar em um vídeo, mas nunca fica a mesma coisa.
19.
Um dia te vejo entrar no ônibus. As coisas já não são as mesmas. Dessa vez, não vai me ver antes mesmo de passar pela roleta. Sorrir e sentar ao meu lado.
Por algum motivo, o 616 anda ainda mais lotado. As filas chegam a pontos inéditos e logo se dividem em duas, a das pessoas que que aceitam ir em pé e as que aceitam esperar. Eu espero e por isso estou sentada no banco mais alto quando você entra.
Não sei se você me vê. Uma vez me ensinaram que se você consegue ver é porque pode ser visto. Na época, isso não foi suficiente. Continuava espiando da coxia. Querendo ver de um outro lugar o que acontecia no palco.
Não sei como você consegue se espremer e passar pela catraca. Vejo um pedaço de você. E então só uma confusão de gente em pé e esmagada em um ônibus que custa R$4,05.
É o último dia do verão. Você sai do enquadramento. Eu me concentro em olhar a cidade.
Estou em mais um daqueles momentos em que a vida de profissional do texto e doutoranda não está abrindo muito espaço para a escritora. Tenho alguns rascunhos e ideias de texto em andamento para a newsletter, mas a corrida para os eventos de fim de ano estão mais urgentes. Ainda assim, não queria ficar muito tempo sem dar notícias, por isso resolvi enviar esse texto meio requentado que publiquei anos atrás, em 2019, na minha primeira newsletter (e pelo qual ainda tenho carinho). Espero voltar em breve com escritas mais frescas! Até logo, Taís
quase senti saudade de andar de ônibus e olhar a vida passando lá fora. Quer dizer, senti!
Acho que o 422 é uma linha especialmente convidativa pra ficar só olhando a cidade. Às vezes esperava por ele mesmo podendo entrar em outros que passavam antes