1.
Nos últimos anos, meu maior projeto de escrita foi um livro sobre a história de ser filha do meu pai. Enquanto investigava sobre como contar essa minha história, passei a ler quase tudo com o olhar de quem procura pelo testemunho de outres filhes. Aos poucos, fui criando a minha própria bibliografia, coletando histórias de filhes como companhia do meu percurso de pesquisa e de escrita.
E, se você pensar bem, quase toda história é contada, mesmo que no fundo, por essa perspectiva: qualquer personagem ou pessoa que narra uma história guarda também a história de ter (ou de não ter) sido cuidada por alguém.
Diorama, último romance de
é também a história de uma filha, uma filha que busca um lugar apropriado para essa posição em sua vida.Cecília, narradora e protagonista de Diorama, tem sua história marcada pelo fato de ser filha de um homem público suspeito de assassinar outro homem público. Esse assassinato, os dias anteriores e posteriores a ele, é um acontecimento que permeia o enredo do romance em uma forma de tempo não linear. A narradora está sempre entre idas e vindas, alternando entre a sua realidade atual e o Brasil dos anos 1980. De algum modo, é como se essa filha estivesse tentando encontrar uma forma de, enfim, contar a sua versão dessa história, não como ela de fato aconteceu, mas com as ferramentas que ela agora possui para elaborar todas as camadas que esse evento traumático ativa.
Nessa história, até então, o pai é uma mancha da qual ela tenta se desvencilhar. Uma fuga tão difícil de ser executada que Cecília precisa deixar a terra natal e se reinventar como uma anônima fora do Brasil. Se ela encontra a liberdade de escapar das tramas de sua família vivendo nos Estados Unidos, onde o caso de violência no qual seu pai esteve envolvido é desconhecido ou irrelevante, a memória daquilo que a aconteceu, porém, a persegue. O início de Diorama me parece justamente este ponto em que Cecília não suporta mais se esquivar e aceita conviver com esse passado.
2.
Este ano entrei no doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na Puc-Rio com uma pesquisa que se propõe a pensar a relação entre memória e Brasil na poesia contemporânea. Minha hipótese é de que há algo no nosso tempo presente que impulsiona um olhar para o passado, algo que é, sem dúvidas, um sintoma político dos últimos acontecimentos que nos atravessaram enquanto indivíduos e sociedade desde 2018. Um dos elementos da minha pesquisa é, por exemplo, o luto político após a execução de Marielle Franco em 14 de março de 2018.
A trama de Diorama se baseia em um caso verídico, o Caso Daut. Bensimon conta que se lembra da repercussão do assassinato de José Antonio Daut, um político e radialista de Porto Alegre, cidade em que ela nasceu e morou por grande parte de sua vida. Em 1988, ano em que Daut foi assassinado, Carol tinha seis anos. Mais de trinta anos depois, ela resolve pesquisar sobre essa história e transformá-la em uma narrativa ficcional. Os personagens de Diorama têm um universo particular inventado pela subjetividade da autora, mas o cenário e a trama são baseados em um passado verídico.
O que impulsiona essa vontade de voltar para um caso esquecido do fim dos anos 1980?
Talvez a dificuldade de olhar para a destruição que acontecia bem na nossa frente de forma avassaladora a partir de 2018. Talvez a suspeita de que essa destruição não vem de um acontecimento súbito e inexplicável, mas de alguma coisa que ficou esquecida em nosso passado.
3.
Este semestre estou fazendo uma disciplina com Fred Coelho, meu orientador, que investiga a possibilidade de existir uma espécie de Forma Brasil. É uma tentativa de especular se há ainda hoje algum elemento, alguma forma, que possa nos remeter ao Brasil enquanto um terreno imaginário e simbólico indiscutível. Qual e como seria uma forma que pode ser chamada em unanimidade como brasileira? Essa é uma pergunta em aberto que vem alimentando as discussões do semestre. Mas que me faz pensar em como tem sido inescapável para uma certa geração de artista e pensadores se debruçar sobre o Brasil e, além disso, se localizar dentro desse terreno e de sua história.
Bensimon conta em algumas entrevistas que Diorama é seu livro mais brasileiro. Enquanto eu lia Diorama pensava exatamente isso. Dessa vez não deu para escapar do Brasil. Não é que os outros livros da autora não fossem brasileiros, com personagens, contextos, linguagem desse território, é que, agora, além disso, o Brasil com a sua história se torna também um personagem da trama.
Há algo que comentamos em aula que me parece apropriado também para o livro de Bensimon: Muitos dos artistas que criaram obras que podem talvez responder a ideia de uma forma Brasil se localizam de fora deste território – em um nível simbólico e imaginário, mas também material. É o caso de Cecília, a filha narradora que está praticamente foragida do seu país de origem há mais de quinze anos. É também o caso de Carol Bensimon, a autora de Diorama, o seu livro mais brasileiro, escrito enquanto ela vive fora do país, mais precisamente em Mendocino, na Califórnia.
Talvez para inventar um contorno para este país seja preciso algum tipo de falta, mas também de distância.
4.
Um tema de fundo do livro que escrevi sobre ser filha do meu pai é algum empuxo para uma vida que foge de uma conduta cishétero, ou seja, uma vivência LGBTQIA+. Mas não é bem isso.
Me interessa como filha também investigar como começou em mim alguma coisa que não se encaixa nos termos que me diziam que as coisas deveriam ser. Como algum tipo de desvio, de vértice formador, começa a ganhar corpo na nossa infância? De onde vem isso?
Não sei se há uma resposta. A ideia não é retomar uma origem, mas especular, fabular, sobre as linhas dissidentes que me fazem chegar até esse caminho fora de uma certa ordem totalitária. São perguntas que produzem outro modo de olhar para o passado, buscando nesse tempo indícios de quem nos tornamos.
Cecília, em suas idas e vindas no tempo, parece também traçar as rotas dissonantes de sua história.
Há uma crise dos quarenta anos em curso no início dessa trama: Além de ser uma filha que foge de sua história familiar, Cecília é uma adulta funcional, ainda que não exatamente convencional. É bem-sucedida profissionalmente, porém em um emprego excêntrico – é uma taxidermista –, é casada com um homem cishétero, porém sem ter filhos.
Mais ainda, parece que Cecília tem um apreço por esses “poréns”. Há algo nessa personagem que resiste a ideia de seguir um curso esperado, ela não deseja tornar-se uma adulta como os adultos que conheceu na infância.
Uma das crises que movimenta a narrativa é justamente o fato de que Jesse, seu marido, quer ter filhos, quer formar uma família. Enquanto Cecília não sabe se tem o mesmo desejo. Ela tem quarenta anos e, teoricamente, deveria ter algum senso de urgência para se decidir sobre isso. Mas Cecília está vivendo dentro do tempo de sua própria vida e não do tempo que é imposto a ela por pressões externas. Talvez ela não queira ser nem filha, nem mãe, mas só uma pessoa lidando com a experiência de estar viva.
Diante da pressão do companheiro, Cecília faz movimentos bruscos para demarcar os seus limites. Sem querer ser empurrada para dentro de um enquadramento de família nuclear, resistindo a fazer parte desse diorama, ela vai se abrir para outras experiências, por exemplo, a possibilidade de desejar mulheres.
Um desejo que, na trama, não tem o peso de uma descoberta que abre uma fissura na sua identidade. Não, esse é só mais um desejo, mais uma abertura. E abrir novas rotas não assusta Cecília, o que ela teme é a repetição.
5.
A cena inicial de Diorama é Cecília espremida entre seus dois irmãos e o pai a caminho de uma tarde de caça.
Ela é levada até o sítio onde o pai vai ensinar aos filhos a atirar e a matar animais.
A filha não participa desse momento que, supostamente, deveria unir o pai e os filhos na manutenção de uma tradição, garantindo que ela vai continuar a se repetir.
A filha fica de fora, espera-se que ela se distraia, bem boazinha, com qualquer outra coisa. Essa distração, longe do olhar do pai, é o espaço de liberdade que Cecília tira proveito. É ali que ela inventa e descobre uma saída que é só sua.
Quando adulta, o único vínculo afetivo familiar que Cecília vai manter de verdade é com o irmão que também fica de fora, apesar de ser obrigado a fazer parte desse rito de iniciação à violência. Vinícius é o irmão mais velho que recusa a performance de masculinidade imposta pelo pai e, de propósito, erra o alvo para deixar que um pássaro escape com vida.
É ele quem olha para Cecília e enxerga nela mais do que uma menina desprovida de inteligência e subjetividade. Ele sabe que apesar de ser uma criança, ela já é uma pessoa. Conversa com ela, compartilha o que conhece, mostra seus álbuns e a apresenta a um universo destoante da estrutura familiar a qual estão atrelados. Esse universo que Vinícius constrói em fuga é também um espaço de liberdade que Cecília tem a chance de visitar. É como se ele esticasse a mão para ela dizendo: hey, baby, take a walk on the wild side.
No último capítulo, “Anjo azul”, a trama do romance é infiltrada, passa a ter não só a voz de Cecília, mas também a de Vinícius. É um momento bonito em que a história do irmão se revela como uma parte incontornável de quem Cecília escolhe ser. Se em algum momento, ela poderia ter aceitado permanecer quietinha, se distraindo da história de sua família, mas sem deixar de fazer parte desse retrato, é a partir da convivência com Vinícius que Cecília decide ser mais do que uma filha.
Ela aceita o seu convite para ver algo no mundo que vai além daquele enquadramento violento e sufocante. Cecília e Vinícius, juntos, se tornam testemunhas, forasteiros e também aliados que escolhem, com todos os custos, descobrir o que existe do lado de fora.
Oficina criativa: Escrever a fúria
Em setembro, realizo a 2º edição (e última deste ano) da Oficina criativa: Escrever a fúria.
Essa é uma oficina que criei a partir do meu mestrado em Ciência da Literatura na UFRJ. Ao longo da pesquisa, percebi que a poesia brasileira contemporânea fabrica imagens para nomear sentimentos que com frequência são silenciados, principalmente entre pessoas dissidentes e minorias sociais.
Entre esses sentimentos, os que mais se destacavam eram a raiva, o ódio e a fúria. Assim desenvolvi um dossiê de leituras para investigar formas de nomear e usar a fúria.
Quem se inscreve na oficina recebe esse dossiê, além de ter acesso aos encontros e duas propostas de exercícios criativos.
As informações completas sobre a Oficina criativa: Escrever a fúria se encontram no Formulário de Inscrição.
Taisssssss, voce sempre me pega !!! adorei o conteudo