Em 1991 a Disney estreava uma história antiga contada com a mais nova – e agora obsoleta – tecnologia. Uma vez que uma história é contada ela já começa a deixar de ser a mesma. Não sei se a contaminação é um jeito de se perder ou de continuar.
Algumas histórias permanecem mais do que as outras e isso é privilégio de linguagem.
Algumas histórias se entranham. São ao mesmo tempo reflexos e pilares. Algumas histórias se atualizam no tempo porque sustentam uma estrutura. E nenhuma estrutura sobrevive sem boas histórias.
Os filmes de infância permanecem por muito tempo depois de seu lançamento. Seus personagens viram decalques, colam em lancheiras, copinhos, capas de prova, galochas de chuva, lancheiras, lanches do Mc Donalds, Barbies, temas de festas, papel de arroz. Os temas de infância habitam os corredores do mercadão de Madureira e o imaginário para sempre manchado de algumas mulheres adultas.
Todo conto de fadas guarda uma renúncia como o começo de uma promessa. Nós nunca ficamos para ver o final feliz.
A isca do entretenimento é o sacrifício. Oferecemos nossas bocas no gancho da perda. Quem se dispõe a perder tudo pelo outro deve ter a sua espera uma vantajosa recompensa. É isso que esperamos.
Está espalhado pelas redes o revés da história. Minuciosas análises feministas contam como Bela reflete o trabalho emocional esperado das mulheres para transformar uma fera – um homem de má conduta – em um príncipe – um marido ideal. Mas antes de chegar à fera é preciso falar do pai. O sacrifício começa quando Bela encarna o papel de boa filha. É ela quem, para poupar seu pobre e dócil pai, se oferece como sacrifício. É ela quem escolhe viver confinada com uma fera. Antes de ser uma boa mulher, Bela é uma boa filha.
Sempre preferi as princesas desobedientes. Jasmin libertando as pombas. Ariel se aproximando da superfície pronta para espiar o que existia do outro lado. Me fisgava o tédio fermentando a revolta das princesas confinadas. Os príncipes rebaixados a um mero utensílio para a fuga. Camuflar o desejo é um hábito que se aprende desde nova. Como elas estavam dispostas a atravessar as fronteiras a qualquer custo.
Perseguir o que se quer é um outro tipo de renúncia. Dependendo do ponto de partida, perder a voz, por exemplo, pode ser uma escolha.
Escrevi esse texto em 2021, quando estava rascunhando o que seria um livro chamado A história das filhas e acabou se tornando meu novo livro, Expansão Marítima. Ao longo do processo de editar e montar essa obra, percebi que este texto, que agora publico aqui, precisava ficar de fora. Isso é comum em processos criativos. Às vezes a gente precisa anotar, rascunhar, escrever, reescrever ou… jogar fora. Nesse caso, é um texto que não fazia mais sentido no tom narrativo e no recorte que criei para o Expansão Marítima. Porém, achei que seria interessante publicar na Trajetos de Escrita, já que esta newsletter existe parar compartilhar os bastidores da minha escrita. Espero que vocês gostem! ✨
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Deixo aqui a sinopse do livro para quem ficou com vontade de conhecer mais:
Na década de sessenta, como muitas outras famílias brasileiras nesse período, o jovem Edmilson se muda de Irará, município da Área de Expansão Metropolitana de Feira de Santana, no estado da Bahia, para o Rio de Janeiro. É nesse novo espaço que passa a se chamar Valmir, seu nome de registro. Expansão Marítima, de Taís Bravo, é um livro que se constrói a partir e por conta desse deslocamento do pai da autora, o mesmo que, ainda criança, ao olhar o mar de Copacabana com o patrão de sua mãe, descobre que o mundo se organiza entre aqueles que podem e aqueles que não podem mergulhar no mar. Entre aqueles que nunca terão nada e aqueles que podem se dar descanso. E é entre esses dois polos que se apresenta uma inquietação maior: a tentativa de montar a história de ser filha.
Na busca pela genealogia de seu pai e de sua família, Taís Bravo constrói uma narrativa fragmentada de sua própria construção como pessoa, sujeito sempre em relação, com seu pai, com sua cidade, com a história e com os cômodos das casas por onde passou. Ao investigar a vida de Edmilson, sua própria história, e o arcabouço sanguíneo que os liga, como também liga sua mãe e sua avó, a autora nos apresenta uma obra ao mesmo tempo irônica, inteligente e sensível, em que textos em prosa e em verso dialogam, como ela bem aponta, com a carta de tarô da Força. Como na carta, vemos uma mulher que se debruça inteiramente sobre a mandíbula de sua dupla e investiga o que a fera tem a dizer. É nesse lugar, percebendo que a fera pode ser tanto o pai quanto ela mesma, que entendemos que Expansão Marítima é a tentativa de contar a história de uma filha e a de seu pai a partir da perspectiva de alguém que deseja se tornar algo além de filha.
muitas vezes leio teus textos e percebo que ler só uma vez vai ser suficiente pra entender o que você mexeu aqui dentro. gosto do que você tece escrevendo que quase sempre é sobre o que tá dito e também sobre tudo que foi sentido antes durante e depois do que ficou gravado no momento da escrita. tô curiosa pra ver quantas camadas de texto você construiu no seu livro
Taís <3