De vez em quando, me dou conta da sua presença ainda emaranhada entre as minhas escolhas.
Esses dias foi a pimenta calabresa que salpiquei no molho de tomate. Você não gostava muito desse tempero. A lembrança não veio do gosto, mas do utensílio.
De repente, olhei aquele pote, em vez de apenas segurá-lo com pressa para não perder o ponto. Olhei o vidro cheio de pimenta calabresa e vi o rótulo já gasto, então me lembrei. Me dei conta de que ali dentro já existiu a sua geleia favorita. Esse pote que era seu, foi parar na minha casa, não a que você conheceu, mas a casa onde eu agora moro.
Não era uma informação nova. Eu sempre soube que aquele pote era seu. Mas me acostumei a não ver mais a sua presença. Era só um potinho de tempero e não a embalagem em que um dia você comeu a sua geleia favorita.
Lembro que, um dia, para te perturbar, fui contando quantos potinhos da mesma marca de geleia existiam espalhados pelos cômodos da sua casa, guardando desde plantas crescendo dentro d’água até todo tipo de cacareco. Dezenas de potinhos. Evidências do seu consumo excessivo daquela marca cara de geleia 100% fruta.
O seu sabor preferido era damasco, que não vejo muita graça, eu prefiro frutas vermelhas, amora, blueberry ou uma boa geleia de goiaba.
Sei muito pouco de como você vive agora. Embora ainda sinta que conheço você. Ou melhor, conheço quem você um dia foi.
Será que ainda compra essa mesma marca de geleia? Ou será que descobriu outros sabores?
Será que, sem nem me dar conta, eu também deixei algo que ficou com você?
Não faço ideia.
As suas coisas, eu sei, estão aqui, convivendo comigo há tanto tempo que já se tornaram minhas.
Esse texto faz parte de um projeto de escrita até o momento chamado “Receitas para o fim”. Você pode ler mais um texto do mesmo projeto aqui.
Queria aproveitar essa newsletter para indicar uma zine que reúne dois temas que amo: comida e arquivo. Quem disse que sapatão não sabe cozinhar? é uma tradução e publicação coletiva da PSSP. É um tanto mágico que um punhadinho de papel guarde tantas histórias: Tudo começou nos anos 1980, quando Maya Contenta e Victoria Ramstetter organizam um livro de receitas chamado Who Ever Said Dykes Can’t Cook? para arrecadar fundos para o Cincinnati Lesbian Activist Bureau. Quase quarenta anos depois, Félixe Kazi-Tani, pesquisadore transfeminista francese, encontra este documento no Lesbian Herstory Archives. Até que, em São Paulo, um outro coletivo se reúne em oficinas para experimentar formas de traduzir e adaptar este texto para o contexto brasileiro, adicionando outras receitas e histórias, transformando esse arquivo em uma matéria viva que pode ser editado de mão em mão. Comprei essa zine na última feira Tijuana que rolou no Rio de Janeiro e estou muito encantada. O modo como as receitas são escritas cria uma sensação íntima, parece que compartilhar o preparo de uma comida fosse um modo de entrar um pouquinho na vida de alguém (e eu realmente acredito nisso). Me sinto conhecendo novas personagens a cada prato, o que fica ainda mais interessante quando até Gayle Rubin ensina como fazer um macarrão com molho apimentado.
Oficina criativa: Escrever a memória
Em outubro, lanço uma nova oficina criativa a partir da pesquisa que venho realizando no doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na Puc-Rio. Escrever a memória é uma oficina criativa que investiga formas de olhar o passado a partir de lembranças íntimas e testemunhos políticos.
Assim, as leituras e os exercícios de escrita da oficina abordam elementos como fotografias e arquivos; receitas e transmissão oral de histórias; a leitura e a escrita como produção de registros e, por fim, os testemunhos que nascem a partir do nosso próprio tempo histórico.
Quem se inscreve recebe um dossiê de leituras e também sugestões de exercícios criativos para escrever a memória.
Os encontros serão nas segundas das 19 às 21 horas, nos dias 16, 23, 30 de outubro e 06 de novembro. E você encontra todas as informações no Formulário de inscrição.
tenho um fraco por textos escritos para uma segunda pessoa. adorei esse!
Adorei esta news, Taís. Escrevi um livro chamado "Contos para saborear" e o teu "Pimenta calabresa" me fez lembrar dele. É que acho que comida, temperos, amores e sensações criadas a partir dessa mistura combina muito bem com Literatura, não acha. Gostei muito da dica do Quem disse que sapatão não sabe cozinhar. Quero fazer sua oficina. bjs.