Oito de ouros ou a alquimia de estar presente
uma conversa a partir do podcast "Eu preciso falar de amor aos domingos"
O espaço apertado da minha cozinha, onde mal cabem duas pessoas, tem sido um lugar para estar presente comigo mesma. É ali que encontro terreno para pensar e sentir com calma, com as mãos ocupadas, imersa nos meus processos.
Alguma alquimia acontece nesses momentos. Entre a água e o fogo, transformações internas ganham corpo, me lembrando que não existe distinção entre o que sinto e o que penso, entre minha cabeça e minhas pernas, mãos, braços. Ali, estou inteira em mim.
Nos últimos meses, incorporei o podcast “Eu preciso falar de amor aos domingos” da Jaciana Melquiades na minha rotina. Já se tornou parte dos meus rituais ouvir os episódios, enquanto lavo a louça e/ou cozinho.
Ouvindo a Jaciana, como uma companheira de tarefas diárias, encontro uma interlocutora para muitas questões que me atravessam na escrita, na terapia, na vida, enfim - como miragem, tentativa e construção.
Sinto que Jaciana é uma pessoa que, como eu, está em busca de entender quais dinâmicas e relações formaram sua subjetividade - muitas vezes sem que tivesse exatamente escolha sobre elas - para poder, então, assumir, agora, agência, reivindicar seu poder de decisão e especular outras possibilidades de existência.
Acredito que muitas pessoas da minha geração estão vivendo processos parecidos. Somos, em geral, pioneiras. Somos as primeiras pessoas de nossas famílias a ter a chance de olhar para dentro, se investigar, questionar as opressões que tomam conta de nossos destinos e ter a coragem de fazer escolhas, inventar novos nomes, colocar em palavra e em ação sentimentos e desejos até então inéditos.
É natural que a gente crie e busque testemunhos desses processos singulares, traçando pontos de encontro entre eles. Afinal, ser pioneira pode ser custoso, solitário, assustador.
Ouvindo o “Eu preciso falar de amor aos domingos” me sinto menos só. Encontro referenciais para a minha trajetória. Às vezes é um sopro de fôlego para seguir em frente, em outras uma abraço quentinho para os dias em que se manter de pé já é suficiente e tudo bem ir aos poucos, dar um passo para trás até poder dar dois para frente.
Erguer a laje de nossa própria história, aprender a contá-la e tomar posse dela não acontece de um dia para o outro. São necessários recursos materiais, planejamentos, além de toda uma construção em um terreno desconhecido. Demanda sensibilidade e tempo, além de paciência e calma para errar e tentar de novo.
Tem um episódio específico do “Preciso falar de amor aos domingos” que me marcou muito: Finca o pé no presente e se ama hoje.
Acho que um certo impulso excessivo ao autoaprimoramento é uma tendência comum entre pessoas que estão se repensando e buscando inventar novas formas de vida. Quando a gente constata tudo de errado que já aceitamos, rola uma agonia para não repetir os erros, para não perder mais tempo. É preciso melhorar e logo, é preciso chegar rápido na versão idealizada dessa nova vida, dessa nova pessoa que estamos tentando criar.
Mas estar continuamente se esforçando para se aprimorar, para reparar algo e ser alguém melhor, é também, com frequência, perder de vista o presente.
Nesse episódio, a Jaciana comenta situações de sua própria vida para falar sobre um processo de reconhecer seus limites e saber cuidar deles dentro de sua rotina e relacionamentos. Ela explica que esse reconhecimento só foi possível quando se tornou também capaz de enxergar e celebrar a pessoa que ela é hoje.
Esse tema me pegou em um ponto delicado, porque, quando eu ouvi, não tinha certeza se estava feliz com o meu presente. Mais ainda, eu estava bastante infeliz com quem eu já tinha sido. Frustrada por ter aceitado o que não merecia, por ter me silenciado e anulado meus sentimentos, não deixava que o passado fosse embora. Uma sensação grande de injustiça e de desagrado com o desenrolar de alguns acontecimentos impedia que eu tivesse vontade de me olhar.
Duas formas bastante eficazes de dissociar do presente:
Puxar a casquinha do machucado, se ocupar da mágoa com o que já havia sido.
Inventar uma série de cobranças e se atolar em ansiedade e demandas em busca de uma superação que só existe em um futuro incorpóreo.
Então, lembrei que no último dezembro, escrevi isso aqui:
Fico pensando que, às vezes, não hesitar significa apenas olhar de frente para o que a gente não sabe. Viver as nossas tristezas. Respeitar os interlúdios. Olhar para o que foi perdido. Estar onde estamos. Desviar das performances de como deveríamos estar nos sentimos ou do que deveríamos estar fazendo. Encarar a incerteza com coragem. E, quando for a hora, quando o desejo despontar, saber também se lançar, mais uma vez, aos seus movimentos.
Ouvindo a Jaciana entendi que talvez eu precisasse pisar devagar no meu presente. Ir chegando aos poucos, com cuidado. Olhando com honestidade para o que ainda me desagrada, as frustrações, os arrependimentos, as minhas limitações, até, lentamente, me aproximar do que brilha.
Estar onde eu estou é me ver inteira. A celebração não é súbita, é um processo, quase um escaneamento do que foi, do que ainda não é e do que me move agora, dos meus desejos, ambições e conquistas. Mas nada disso acontece sem dar antes esse primeiro passo: Fincar o pé no presente.
Ultimamente, tem aparecido muito para mim uma carta no Tarô, o VIII de ouros. Essa é uma carta de ofício, de trabalho atencioso e concentrado. A pessoa retratada nessa carta é alguém lapidando o ouro. É uma agente de ação. Ela não olha para o passado ou para o futuro. Está ali debruçada sobre a sua ação, fazendo uso do seu corpo.
Acho que a ideia de estar atenta a quem eu sou hoje, dentro da construção da minha história, é um pouco como se ocupar desse fazer que o VIII de ouros demonstra: um gesto de ação e aposta no cotidiano, no que se transforma aos poucos, dia após dia, com cuidado e empenho. Como as minhas mãos, entre a água e o fogo, entretidas com a alquimia de estar presente.
Oficina criativa: Escrever em 1º pessoa - 2º edição
No último final de semana, chegou ao fim a primeira edição da Oficina criativa: Escrever em 1º pessoa e foi um sucesso 🤍 Um grupo lindo de pessoas lendo, escrevendo e criando juntas!
E já estão abertas as inscrições para a 2º edição da oficina em setembro. Para quem ainda não sabe, a Oficina criativa: Escrever em 1º pessoa são dois encontros online em que investigamos diários e cartas, buscando experimentar como esses gêneros podem ser ferramentas de escrita.
Quem se inscreve na oficina, além de participar dos encontros, recebe um dossiê de leitura com textos de autoras como Ana Cristina César, Conceição Evaristo, Flávia Péret, Susan Sontag, Rafaela Miranda, entre outras.
A oficina será realizada via Google Meet, nos sábados 16 e 23 de setembro das 10 às 12 horas.
As informações completas estão no formulário de inscrição. Bora escrever?A
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essa coisa de dissociar do presente também é algo que vem me assolando faz um tempo – inclusive, minha resolução para 2023 foi justamente de me ancorar mais no tempo presente. não tem sido fácil, mas acho que aos poucos estou encontrando o caminho que funciona para mim. sobre essa coisa da mágoa, recebi um livro de psicanálise no clube f da bazar do tempo, chamado "curar o ressentimento" e não esperava me conectar com ele tanto quanto me conectei. gostei muito das imagens que a autora sugere ao longo do livro: o amargo, a mãe e o mar (em francês o trocadilho fica mais legal ainda: l'amer, la mère, la mer). o mar, enquanto espaço aberto, é lugar pra se curar do ressentimento, mas percebo que pra mim também me finca no presente. acho incrível como, pra mim, tudo começa e acaba no mar ❤️
Tava escrevendo sobre pés e presente e dei com seu texto :) sincrônico!
https://descomprimindo.substack.com/p/descalca