O que começa quando a escrita de um livro chega ao fim?
reflexões a partir da escrita de Expansão Marítima
Em O perigo de estar lúcida, Rosa Montero conta sobre como a experiência de publicar um livro a transformou:
“parei de ter crises de terror e de despersonalização logo depois de lançar meu primeiro livro, ou seja, quando comecei a publicar ficção regularmente, e estou convencida de que ambas as coisas estão relacionadas”.
Embora discorde do ponto de partida de Montero, que acredita em uma relação intrínseca e um tanto romantizada entre loucura e criatividade, entendo, em partes, o que ela diz neste trecho.
Em minha vida, escolhi situar a escrita longe de um lugar de cura. Não escrevo para me curar. Prefiro distanciar a arte de uma espécie de resolução para nossos conflitos, traumas e questões psíquicas. Porque, para mim, essa é uma abordagem que pode ser perigosa, às vezes utilitarista, às vezes apenas insuficiente.
Mas ainda assim consigo me conectar com o que Rosa Montero relata nesse trecho.
Porque, às vezes, alguma coisa acontece quando se chega ao fim de um processo de investigação ou criação.
Terminar de escrever um livro, defender uma dissertação, montar uma peça, inaugurar uma exposição, fazer uma performance, são experiências das quais dificilmente alguém sai impune.
Afinal, será que nos dispomos a esse tipo de trabalho para, ao fim, nos sentirmos da mesma forma?
Alguma expectativa de movimento ou transformação nos impulsiona em tais processos.
O investimento de tempo e energia, as ideias, a persistência, a experimentação, tudo isso deixa marcas, cria um acúmulo, produz uma massa concreta ainda que às vezes invisível.
Não penso como cura. Mas escrever um livro muda, sim, algo na nossa subjetividade, nos nossos problemas, emoções e perspectivas.
Algo se transforma no modo como contamos nossas histórias que, depois de um determinado processo criativo, podem ganhar novas camadas.
Não digo cura, porque, se assim fizesse, teria que pressupor medidas, ajustes, um tipo de reparo ou tratamento. Quando acredito que seja um pouco mais misterioso e menos objetivo. Como diz Adília Lopes, poeta que tem sua própria história com a loucura, é um jogo bastante perigoso.
O que se transforma, ou se rearranja, se adquire através de um processo de criação é imprevisível.
Mas pode ser que, quando se atravessa, quando se chega ao fim, algo parecido com uma cura ou uma resolução apareça. Ainda que não seja nesses termos, você se encontra em um outro lugar.
Escrever um livro pode não te curar, mas talvez faça você ter novas formas de lidar com os mesmos problemas.
Se entregar a um processo longo de escrita é certamente se aventurar a se tornar uma pessoa diferente. Me deparei com essas questões depois de terminar de escrever Expansão Marítima, meu novo livro em pré-venda pela Edições Macondo.
Considero Expansão marítima um livro processual. Porque, apesar de ser uma obra de não-ficção e tratar de memórias pessoais, a sua escrita me demandou viver certas coisas para que eu pudesse voltar ao passado e colocá-lo em palavras.
Mas tanto o gesto de contar o que já tinha acontecido quanto de experienciar o que ainda era preciso viver prescindia do fato de estar escrevendo.
A postura atenta de quem está imersa em uma busca era a condição para que experimentasse algo que, quando iniciei esse processo de escrita, eu mesma não podia imaginar.
O que quero dizer é que escrever, ou melhor, estar escrevendo é uma forma específica de se colocar no mundo.
A partir dessa posição é possível intervir na história, instaurar um subterfúgio entre tempos, entre passado e futuro.
Se eu não tivesse começo a escrever o Expansão Marítima, algumas coisas do meu passado não teriam aparecido, assim como alguns eventos, que naquele instante diziam respeito ao meu futuro, também não teriam se realizado.
Um livro-processual é um uma obra que requer um certo caminho para ser escrita e que, enquanto é alimentada, imaginada, ensaiada, vai instaurando mudanças, te conduzindo por um labirinto até inventar uma janela ou uma porta por onde se sente satisfeita de saltar e, enfim, sair para fora de você, te deixando, de novo, só, com novos vazios.
Quando encontrei qual seria o recorte, o enquadramento da história-pesquisa com que vivi (com maior ou menor intensidade) nos últimos quatro anos, foi aparecendo uma saída diferente.
Eu não esperava que fosse por esse caminho que a história ia seguir. Mas o livro me conduziu para um lugar muito íntimo. A sensação era de desembolar um emaranhado de fios que seguiam em uma linha dominante até ver surgir, de repente, uma bifurcação.
Quando não tinha mais o que escrever o fim era nítido.
Eu estava sozinha, um pouco sem fôlego, segurando nas mãos uma possibilidade até então nunca vista.
O que não é uma cura, mas pode ser um outro começo.
Expansão marítima em pré-venda
Meu novo livro está em pré-venda pela Edições Macondo! Comprando na pré-venda, além de garantir seu exemplar com desconto, você também recebe uma plaquete exclusiva com uma conversa entre mim e Estela Rosa sobre o processo de escrever o Expansão Marítima.
Deixo aqui a sinopse do livro para quem ficou com vontade de conhecer mais:
Na década de sessenta, como muitas outras famílias brasileiras nesse período, o jovem Edmilson se muda de Irará, município da Área de Expansão Metropolitana de Feira de Santana, no estado da Bahia, para o Rio de Janeiro. É nesse novo espaço que passa a se chamar Valmir, seu nome de registro. Expansão Marítima, de Taís Bravo, é um livro que se constrói a partir e por conta desse deslocamento do pai da autora, o mesmo que, ainda criança, ao olhar o mar de Copacabana com o patrão de sua mãe, descobre que o mundo se organiza entre aqueles que podem e aqueles que não podem mergulhar no mar. Entre aqueles que nunca terão nada e aqueles que podem se dar descanso. E é entre esses dois polos que se apresenta uma inquietação maior: a tentativa de montar a história de ser filha.
Na busca pela genealogia de seu pai e de sua família, Taís Bravo constrói uma narrativa fragmentada de sua própria construção como pessoa, sujeito sempre em relação, com seu pai, com sua cidade, com a história e com os cômodos das casas por onde passou. Ao investigar a vida de Edmilson, sua própria história, e o arcabouço sanguíneo que os liga, como também liga sua mãe e sua avó, a autora nos apresenta uma obra ao mesmo tempo irônica, inteligente e sensível, em que textos em prosa e em verso dialogam, como ela bem aponta, com a carta de tarô da Força. Como na carta, vemos uma mulher que se debruça inteiramente sobre a mandíbula de sua dupla e investiga o que a fera tem a dizer. É nesse lugar, percebendo que a fera pode ser tanto o pai quanto ela mesma, que entendemos que Expansão Marítima é a tentativa de contar a história de uma filha e a de seu pai a partir da perspectiva de alguém que deseja se tornar algo além de filha.
eu acho que toda escrita honesta é processual, sabe? vem de lá de dentro da subjetividade. não tem como não terminar transformada. (mas também não compro muito a associação compulsória da loucura com a criatividade)
Texto importante pra quem tá no processo de tentar fazer sair de si um livro. Já curiosa com o seu, essa capa tá linda.