O desejo pode ser emancipatório
entre "Retrato de uma jovem em chamas", "A casa na Rua Mango" e "Temporada"
1.
Tenho pensado muito na palavra “emancipação”.
Essa palavra começou a rondar meus pensamentos, quando ouvi o episódio sobre “Retrato de uma jovem em chamas” do Méxi-ap podcast. Nessa conversa com Kênia Freitas, Glênis Cardoso cita uma entrevista em que a diretora do filme, Céline Sciamma, confronta a ideia de que não há um final feliz nessa história de amor.
Ela diz:
Mas o que significa um final feliz em uma história de amor lésbico? Posse eterna? Nós queremos a imagem congelada de duas pessoas se casando. Nós temos que elaborar as nossas próprias narrativas sobre o modo como amamos e escolhemos viver. O primeiro passo é abordar as diferentes dinâmicas de poder que existem em um relacionamento lésbico. Depois, construir um diálogo sobre o amor sem esperar conflito, abandonando a ideia do amor como conflito, como barganha. Afirmar que o amor nos satisfaz. O amor pode ser emancipatório. E que também é sobre amizade. Confiar nesse tipo de eternidade. Sinto que isso é algo que precisamos colocar no mundo, porque diz respeito às políticas do amor. E acho que nossa abordagem é muito perigosa para aqueles que estão no poder e é por isso que nunca é representada.
O amor pode ser emancipatório.
No filme de Sciamma, o amor entre duas mulheres desejantes é uma imagem de emancipação. Uma imagem que rompe com a dinâmica de posse, na qual os lugares de quem deseja e de quem é desejada precisam ser demarcados com rigidez - ainda que essa marcação seja continuamente forjada, já que o desejo nunca é estável.
A beleza de “Retrato de uma jovem em chamas” talvez seja mostrar a desestabilização provocada pelo desejo como um movimento criativo, um movimento que abre possibilidades.
O amor não é dócil nessa história. Porque quando uma mulher se autoriza a desejar uma outra mulher, ela acessa uma nova forma poder sobre seu próprio corpo e isso é uma experiência radical.
Esse desejo que nos convoca a atravessar fronteiras demanda muito mais do que a estabilidade forjada que imaginam como um Final Feliz. Quando acessamos esse poder, nos reconhecemos como agentes, como alguém que cria e que, portanto, pode desejar mais do que apenas repetir fórmulas prontas.
E mesmo quando o amor não vinga ou o desejo se transforma, esse poder deixa rastros que continuam se reinventando.
2.
Quando menina, ela sonhava em ter uma casa silenciosa só para ela, do jeito que outras mulheres sonham com seus casamentos. Em vez de juntar rendas e lençóis para o seu enxoval, a jovem mulher compra coisas velhas dos bazares beneficentes na encardida Avenida Milwaukee para sua futura casa - toda - dela: colchas desbotadas, vasos rachados, pires lascados, abajures precisando de amor.
Em “A casa na Rua Mango” de Sandra Cisneros, uma casa ou um teto todo seu é uma imagem de emancipação.
Nesse clássico da literatura chicana publicado no Brasil pela editora Dublinense com tradução de Natalia Borges Polesso, a expectativa frustrada de viver em uma casa própria confortável e bonita é o início de uma fantasia constitutiva.
Enquanto vive na casa da Rua Mango, Esperanza sonha para si mesma um futuro ao qual possa pertencer. Enquanto sonha, inventa histórias e, nessas histórias, ela é uma mulher que escreve, não sobre a sua vida dos sonhos, mas sobre a sua origem: a Rua Mango.
Assim, cada episódio desse livro é um encontro entre a voz de uma menina que imagina para si um outro futuro e a da mulher que, depois de ter deixado seu lar, lança um novo olhar sobre seu passado.
Nesse encontro entre os tempos, o que conduz a narrativa é o desejo por um gesto de emancipação: Poder contar sua história, o que implica em ter espaço, liberdade e autonomia para imaginar sua própria travessia.
A casa, nesse contexto, é uma condição material que dá concretude a esse desejo. É a imagem que fixa o incessante processo de se emancipar.
3.
Os espaços de solidão dessa mulher. E a busca dela pelo afeto. Isso sempre me despertou interesse. Gostava das situações do trabalho. Afinal, é uma pessoa que ganha a vida entrando na casa dos outros, invadindo essas intimidades, era a chave da personagem. Alguém que, através da profissão, é convidada a conhecer de perto os outros. Pra mim, lembrou o trabalho de atriz. Cada experiência artística é uma tentativa de se aproximar de um lado muito íntimo do espectador, a sua sensibilidade. E no caso da Juliana isso me deixou curiosa desde o início, pois ela se transformava a partir destes olhares.
Em “Temporada”, filme de André Novais Oliveira com a brilhante atuação de Grace Passô, se encontrar só é uma imagem de emancipação. Juliana, a protagonista dessa trama, é uma mulher que muda de cidade ao ser convocada para trabalhar como agente de saúde no combate à dengue.
Seu único laço nessa nova cidade é uma prima que a ajuda quando possível, mas isso não faz de Juliana menos sozinha. Ela se vê tateando caminhos, descobrindo o que pode ou não ser feito e o que deseja de fato fazer.
Aos poucos, ela vai fazendo amigos, conhecendo pessoas e se abrindo a novas experiências. Aceita os convites para festas, os cafezinhos das donas das casas que visita, um corte de cabelo, os momentos de prazer.
O bonito de “Temporada” é a aposta na solidão como uma abertura, uma forma de dizer “sim”. E essa é uma trajetória que acontece nas escolhas diárias de gente comum.
Porque uma história de emancipação não precisa ser uma jornada linear com grandes frases de efeito e reviravoltas.
Assumir a direção de sua própria vida também pode acontecer em silêncio.
4.
Durante os últimos meses, essas imagens lançaram luz sobre as minhas condições de vida, desenhando novas formas e possibilidades.
Cada uma dessas histórias fala sobre uma ruptura e um começo.
Cada uma dessas personagens rompe com ideias de estabilidade e segurança prometidas por certas estruturas e instituições, como o amor romântico, a heterossexualidade e o patriarcado capitalista em suas estreitas formas de vida.
Recusar essas promessas, que tantas vezes se apresentam como a única opção, é apostar em uma via de desejo.
Para dizer “não” ao que se impõe como destino, essas mulheres dizem “sim” a uma jornada incerta, apostando na satisfação como motor e parâmetro de suas escolhas.
Elas se emancipam enquanto inventam aquilo que desejam ser. Nesse mar aberto, não existem guias ou rotas, apenas imagens que indicam caminhos como lampejos.
Esse é um texto escrito em 2020, ano em que comecei a escrever o projeto que se tornou meu novo livro recém publicado pela Macondo Edições. Hoje vejo que as ideias de desejo e emancipação que aparecem nesse ensaio movimentaram muitas mudanças na minha vida durante os últimos anos e dialogam intimamente com a história que conto em Expansão Marítima. Em última instância, acredito que esse livro é também sobre se emancipar como uma sujeita desejante que carrega a história do pai sem abrir mão do risco de descobrir qual será a sua.
A pré-venda do Expansão Marítima chegou ao fim, mas você pode adquirir o livro no site da Macondo. E, logo logo, venho contar as datas dos lançamentos no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte 🌊✨
Oficina criativa: Escrever o desejo
Em julho, vai rolar a 5º edição da Oficina criativa: Escrever o desejo!
São dois encontros online para investigar como ler e escrever o desejo a partir de um olhar insurgente.
Quem se inscreve recebe, além de propostas de exercícios de escrita, um dossiê de leituras com textos de Audre Lorde, Maria Isabel Iorio, Floresta, Matilde Campilho, Adrianne Rich, Grace Passo, Natasha Felix, entre outras leituras.
As vagas são limitadas e as informações completas estão no Formulário de inscrição!
Vem escrever o desejo comigo? ❤️🔥
uau! esplêndido!
precisava ler
que texto gostoso de ler