Procurar um apartamento para alugar no Rio de Janeiro é um tipo especial de humilhação. Há um ano, eu passava uns quinze dias seguidos chorando enquanto habitava a tríade do desespero: Quinto Andar-OLX-Zap Imóveis.
Um dia descobri que precisava encontrar uma casa nova para mim. E, na base do susto, resolvi que era a hora de bancar um desejo antigo: morar sozinha.
Lembro que esse desejo saiu da minha boca como uma solução em um gesto irredutível. Era um desses momentos em que ou organizava minha coragem pra movimentar a vida ou ia me ver sendo levada por uma série de decisões que não eram minhas.
Eu queria ter agência, então resolvi arriscar. Mas não sem chorar copiosamente enquanto buscava apartamentos em uma espiral obsessiva pulando de um aplicativo para o outro.
Lembro de um domingo específico em que atravessei a Haddock Lobo inteira engolindo o choro e amaldiçoando a família tradicional tijucana. Tinha ido visitar um apartamento que estava na faixa de preço que poderia pagar.
Era um sala e quarto, eu não curti muito ser no primeiro andar, mas ficava em uma rua arborizada e silenciosa e tinha aquela cozinha que eu nunca esqueci. Era uma cozinha enorme com ladrilhos amarelos em tom pastel, uma estante embutida, com uma espécie de copa onde eu poderia colocar uma mesa e receber minhas amigas para majestosos cafés da tarde.
Em poucos minutos, eu já sabia como seria toda a minha vida ali.
Só queria enviar minha proposta e assinar logo o contrato. Mas, já de saída, as corretoras me avisaram que, na verdade, o anúncio online estava com o valor errado. Na hora que me disseram quanto de fato custava o aluguel, senti se esfarelando toda a aparência de Mulher-Adulta-Que-Vai-Morar-Sozinha que eu tentava sustentar.
Eu não tinha como bancar a vida que imaginei ali. Foi, então, que atravessei a Haddock Lobo me sentindo um tanto humilhada, mas, principalmente, muito sozinha.
No caminho de volta para a casa que eu já sentia não ser mais minha, parei no Bob’s para comprar um milkshake de ovomaltine. Me alimentar foi algo bem difícil durante aquele mês. Depois daquele tombo, eu precisava de alguma coisa doce e fácil de ingerir. Enquanto esperava minha vez na fila, entendi um pouco melhor o turbilhão que me atravessava emocionalmente.
Encontrar uma casa era muito mais do achar um lugar para morar, era escolher a pessoa que eu me tornaria dali pra frente.
*
A verdade é que encontrar uma casa para viver sozinha é um tema sensível para a maioria das pessoas que eu conheço.
Parece que nos falta repertório até mesmo para vislumbrar a possibilidade de ter um espaço próprio (ainda que alugado). Para quem cresceu no subúrbio e é filha de famílias pobres, a ideia de não dividir uma casa, não constituir uma família e viver sozinha é algo bastante fora da curva. Junto a ausência de um histórico em que essa possibilidade seja concreta, vem a dificuldade de lidar com uma série de burocracias também inéditas. Sem contar as violências que você pode sofrer caso não seja um homem cis hétero branco e classe média. Porque questões de raça, classe e gênero tornam-se muito evidentes quando precisamos preencher fichas, negociar com contadores e prestar contas para uma imobiliária.
Para além de tudo isso, tem ainda um ponto a mais de angústia: Escolher onde você quer morar. Assumir a agência desse desejo e ter que se responsabilizar inteiramente por ele.
E se você escolher errado? E se você se arrepender? E se não bater nunca sol? E se bater sol demais? E se os vizinhos forem péssimos? E se a rua for muito insegura? E se fizer barulho demais? E se não tiver nada de errado mas eu simplesmente não conseguir ser feliz nesse lugar?
Escolher uma casa é se lançar no futuro. E cada possível casa parece guardar uma vida diferente.
Naquele mês de abril, eu alternava entre fantasiar com essa vida que me aguardava e sofrer com todas as dúvidas e inseguranças que tinha em relação a esse mesmo futuro.
No final, eu me agarrei à confiança de que eu era capaz de tomar boas decisões. Me convenci de que eu me sentiria bem assim que entrasse na minha casa e lembrasse que eu tinha feito essa escolha sozinha.
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Assumir a agência de um desejo não é algo simples se você foi educada para se diminuir.
Tem um movimento inconsciente que pode ganhar formas de muitas maneiras distintas: O desacostume em acomodar aquilo que queremos ser, em abrir espaço para o que realmente desejamos, provoca um estranhamento tão grande que se transforma em um estado de alerta.
Você começa a achar que não deve ser possível viver assim. Então, cada momento de satisfação ou de puro movimento vem acompanhado por um medo terrível. Você não consegue se afastar da sensação de que alguma coisa deve dar errado.
Tem um episódio de Sex and the City em que essa relação entre desejo, possibilidade e medo é praticamente desenhada. Miranda, a personagem mais crítica a uma performance de feminilidade fragilizada, compra um apartamento próprio em Manhattan e se vê cercada por uma série de comentários e olhares estranhos por ser uma mulher solteira na casa dos 30 anos comprando um apartamento para viver sozinha.
Ela acha esse tipo de julgamento ridículo e machista. Fica mesmo revoltada. Mas passa a ter medo da própria decisão quando descobre que a última pessoa que morou no seu novo apartamento, uma mulher idosa que nunca se casou, morreu sozinha ali e seu corpo só foi encontrado dias depois parcialmente comido por seu gato.
Era o alerta que faltava para podar pelo menos um pouquinho o movimento de autonomia que conquistava. Miranda, paranoica, passa a deixar mais comida para o seu gato e, uma noite, quando se engasga com seu jantar, tem certeza de que também terá o mesmo fim: morrer sozinha e esquecida.
Veja bem, eu não sou uma mulher branca e hétero, tampouco me alinho ao feminismo liberal, para me identificar com a trama das personagens de Sex and The City. Mas há algo nesse episódio que me toca. Porque Miranda sente medo de ser punida ao atravessar uma fronteira, ao fazer algo que não é esperado de pessoas como ela.
Ainda que comprar um imóvel em Manhattan e me preocupar obsessivamente com quando vou me casar não sejam questões com que me relaciono, entendo bem como a ideia de sacrifício pode ser dominante em nossa subjetividade. A ideia de que não é possível ganhar ou construir algo sem vivenciar, junto a isso, algum tipo de perda ou de punição.
Nós nos acostumamos a acreditar que para crescer, para conquistar um sonho ou vivenciar um desejo, é preciso se sacrificar, se punir ou se censurar.
Para usar uma citação que se aproxima mais do meu repertório, em Teoria King Kong, Virginie Despentes escreve:
“As mulheres se diminuem espontaneamente, dissimulam o que acabaram de conquistar (...) O acesso aos poderes tradicionais masculinos se mistura ao medo da punição. O ato de sair da gaiola tem sido acompanhado, desde sempre, de sanções brutais. Não é tanto a ideia de que a nossa inferioridade que assimilamos (...) É a ideia de que nossa independência é nociva que está incrustada em nós até os ossos”.
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“Casas abrigam nossos sonhos, amparam nossos desesperos, acolhem nosso cansaço”, escreveu a Ellen Rodrigues.
“Olhar as paredes lá em cima, adornos de viagens, fotografias, plantas quase mortas. Observo a curva que a luz da luminária expande em contato com a tinta da parede. O cair da tarde projetando o sol em cima da tv. A pacová que se dobra num vaso menor do que ela merece. O cheiro de alho e cebola refogado num sábado à tarde. As gargalhadas dos meus amigos em almoços em domingo regados a rosé. Tudo isso é casa. É memória. É vivo”.
Um ano depois daquele abril habito minha casa e lembro do que construí até aqui. Como esse espaço foi chão para eu me tornar um tanto mais parecida com quem desejo ser.
Foi nessa casa que aprendi a não temer minha independência.
Aqui, eu cuidei da minha autonomia em cada pequeno detalhe que escolhi, nos rituais que criei, em todos os almoços, nos amores que recebi, nas crises de choro que ninguém presenciou, nos rompantes de alegria, na escolha pelo prazer, nas noites em claro, nas manhãs de preguiça, nas faxinas ao som de Marília Mendonça, nas plantas que deixei morrer e nas que insistem em crescer.
Montando esse lar todo meu comecei a me afastar do sacrifício como forma de vida. Entendi que me interessa mais a prosperidade como uma prática de cuidado com minha autonomia. Um exercício que me faz perguntar diariamente: o que eu sou capaz de fazer? Pra onde meu desejo quer me levar?
Na minha casa, abri espaço para crescer com conforto. Sem precisar me diminuir por medo de não caber mais.
O aconchego da integridade: Estar inteira em mim sem nem pensar em abrir mão de qualquer coisa que sou ou desejo ser. É isso que espero de uma casa toda minha.
Laboratório criativo - Investigando projetos de escrita
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Nossa, esse texto conversou muito comigo. Eu sempre quis morar sozinha, era meu sonho de menina. E o realizei bem nova, até. Mas sempre têm os percalços, né? Essa noite encontrei uma aranha enorme no meu banheiro - daquelas com pernas longas e finas e jeitinho de venenosa. Fiquei sem banho e sem saber o que fazer. Ela saiu andando e passou por mim como se eu não existisse. Atravessou a sala e foi se abrigar atrás do botijão de gás. Hj de manhã, ao finalmente tomar banho, percebi que ela havia voltado para o banheiro e estava atrás da porta. Enfim, este comentário já está longo demais. Mas este tipo de situação sempre me traz indagações do tipo "como seria se eu não morasse sozinha e não precisasse resolver tudo por minha conta?". Obrigada!
Caí nesse texto e amei sua sensibilidade! Esse ano fazem 4 anos que fui morar sozinha e valeu cada momento! O crescimento foi diretamente proporcional 🫶🏻