Meu encontro com Um defeito de cor
sobre efeito do livro de Ana Maria Gonçalves e da exposição no MAR
Em outubro de 2022, eu estava exaurida. Naquele estado em que você ainda não pifou, só porque desenvolveu um intenso mecanismo para vedar suas emoções. Quem vê, te acha funcional, mas por dentro tem alguma coisa apodrecendo. Você sente o cheiro, se constrange, mas não sabe muito bem de onde vem, então, continua do jeito que dá.
No meu caso, vinha de um acúmulo de situações estressantes. Um trabalho que me sobrecarregou emocionalmente, a indecisão diante da minha carreira acadêmica (estava em um limbo entre defender minha dissertação de mestrado e o esforço para escrever um projeto para a seleção de doutorado), um relacionamento confuso chegando ao fim e, ainda por cima, o peso da eleição presidencial.
Todos os dias o futuro me olhava como uma matéria informe e assustadora. Me sentia perdida, desconectada de mim mesma. Distante do que me fazia ser quem eu desejo ser.
Nessa espiral, eu tentava parar de me negligenciar. Tentava fazer contato com o que me constitui. Sem saber se haveria uma resposta de volta.
Numa sexta-feira em que me vi especialmente ansiosa, resolvi dar um passeio só comigo pela cidade. Sempre gostei de passar um tempo sozinha. Como filha única, descobri logo o prazer em estar só, andar por aí, olhar as coisas do meu jeito, no meu ritmo. Mas nos dois últimos anos eu não encontrava a minha companhia.
Então, naquela sexta, resolvi me levar pra almoçar e depois visitar uma exposição no MAR - Museu de Arte do Rio. Fui com a minha companhia ausente, com o farrapinho de subjetividade que me restava, mas fui só comigo. A exposição recém-inaugurada era de um livro que eu sempre quis ler sem nunca ter tido nem coragem de começar: Um defeito de cor.
(Aqui eu quero fazer uma pequena pausa: Um defeito de cor é um livro imenso. Não só no seu tamanho físico, mas no que a sua existência significa para a história do nosso país e de cada pessoa que o lê. Hoje eu sei que é um livro incontornável. Não dá pra sair a mesma depois de ter tido contato com a escrita de Ana Maria Gonçalves. Nesse texto, eu me aventuro apenas a contar sobre meu encontro com o livro e não exatamente sobre o livro em si. Porque não tenho ainda palavras, porque precisaria de mais tempo, leitura, estudo e espaço para isso. Então, vou me ater ao efeito que esse livro teve na minha vida, um recorte pequeno, minúsculo, diante de tudo que Um defeito de cor é e pode ser.)
Quando saí da exposição, nenhum dos meus problemas estava nem perto de ser resolvido. Só que algo tinha mudado. Eu me sentia um pouco mais desperta. Olhava para o futuro com curiosidade.
Decidi que precisava ler Um defeito de cor antes que a exposição chegasse ao fim, em maio de 2023 (depois a exposição foi prolongada até 27 de agosto). Pensava que algo em mim poderia ser diferente se eu conseguisse cumprir com pelo menos esse desejo antigo.
Em novembro, li o prólogo de Um defeito de cor e me arrepiei da cabeça aos pés com a história que Ana Maria Gonçalves conta sobre o seu encontro com o livro.
Porque para escrever esse livro foi necessário um encontro, ou melhor, uma série de encontros. Ela teve que estar desperta, atenta a sua curiosidade e disposta a ir até lugares novos. Foi preciso se colocar em busca para que a história do livro chegasse até ela como uma descoberta, um encontro de serendipidade:
“Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento sobre o que ‘descobrimos’ para que o feliz momento de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos”
Naquele fim de ano, eu, enfim, pifei e não consegui avançar na leitura. Enquanto tentava apenas me retirar de um turbilhão emocional, me perguntava como, de alguma forma, começar a me preparar para o que estava à minha espera. Uma pergunta que era um gesto de fé, porque pressupunha a existência de algum caminho que fosse meu.
Foi só em janeiro que comecei, de fato, a ler Um defeito de cor, uma leitura que me acompanhou até maio. Um livro de 952 páginas se torna mesmo uma convivência. É como se, durante esses cinco meses, eu pudesse sempre contar com a companhia de Kehinde, a narradora e protagonista de Um defeito de cor. E Kehinde é a personagem mais apaixonante que eu já conheci.
São muitos os aspectos que me emocionaram ao longo do livro (e para cada um deles seria possível escrever uma tese de doutorado ou um livro de poemas, ou tantas outras coisas): A história do Brasil contada pela perspectiva das pessoas negras escravizadas, as descrições da Bahia (um território que faz parte do meu imaginário desde a infância), a relação de Kehinde com o estudo e a leitura, a sua interlocução com um filho perdido… Mas acho que o que mais me envolveu na leitura era a perspectiva de Kehinde, a clareza e a honestidade com que ela encara e narra a sua vida.
Conforme conta sua história, desde a infância até a velhice, Kehinde mantém uma integridade impressionante. Mesmo enquanto tenta sobreviver em uma conjuntura que a todo o tempo nega a sua subjetividade, ela se mantém como seu próprio eixo, sempre almejando a sua liberdade.
Ao longo de Um defeito de cor, conhecemos, do início ao fim, a vida de uma mulher negra audaciosa que não é uma heroína, é humana e - dentro dessa realidade brutal, violenta e racista - ousa sonhar, crescer e construir uma vida digna para si mesma e para os seus. Faz isso entre erros, perdas, triunfos e dores, entre idas e vindas. Kehinde parece estar sempre em trânsito, talvez porque a fuga seja uma estratégia de sobrevivência, mas também por ela não hesitar em abrir caminhos, em assentir os movimentos da vida, em suas urgências e desejos.
Quando Kehinde sente que está perdida, ela sabe para onde voltar. Ela busca ouvir, nos seus sonhos, nos sinais que encontra pelo caminho, as vozes de quem a protege, suas ancestrais, seus orixás, seus voduns. É essa convivência com sua origem que faz com que ela não se esqueça que é alguém, que tem um destino, uma cabeça, pra cuidar. E é por isso que, em seu caminho, Kehinde algumas vezes se perde, mas nunca se abandona.
Há muitos trechos do livro em que o movimento anda lado a lado com a convivência com o seu passado, com essa origem que orienta seus passos. Mas, para mim, a passagem mais marcante é a que narra a chegada de Kehinde ao Brasil. Depois de ser raptada e perder a avó e a irmã gêmea Taiwo durante a viagem no navio negreiro, ela encontra um modo de escapar de mais uma violência. Para salvar seu nome e a memória de suas ancestrais, ela foge para o mar:
“(…) disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que eu estaria sempre ligada à Taiwo, podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia. O escaler que carregava o padre já estava se aproximando do navio enquanto os guardas distribuíam alguns panos entre nós, para que não descêssemos nuas à terra, como também fizeram com os homens na praia. Amarrei meu pano em volta do pescoço, como minha avó fazia, e saí correndo pelo meio dos guardas. Antes que algum deles conseguisse me deter, pulei no mar.
A água estava quente, mais quente que em Uidá, e eu não sabia nadar direito. Então me lembrei de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a terra. Um dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi gritarem com ele, provavelmente para não perderem uma peça, já que eu não tinha como fugir a não ser para a ilha onde outros já me esperavam. Ir para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu queria, desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns.”
Na semana passada, voltei à exposição no MAR. Fui só comigo mesma, dessa vez um tanto mais presente. Dez meses depois, ainda não sou uma pessoa tão diferente da que era naquele mês de outubro. A diferença é que realizei esse desejo: li Um defeito de cor e agora a história de Kehinde, com toda a sua insurgência e mistério, também faz parte de quem eu sou.
Oficina criativa: Escrever a fúria
Em agosto, tem mais uma nova oficina na Mulheres que Escrevem. Escrever a fúria é uma oficina que surge a partir da minha pesquisa sobre poesia contemporânea brasileira escrita por pessoas dissidentes.
Ao longo das minhas leituras, percebi que muitas poetas estão fabricando imagens para nomear a raiva, o ódio, a fúria e para encontrar um uso para esse sentimento - como bem diz Audre Lorde no seu ensaio “Usos da raiva”.
Assim, durante essa oficina de dois encontros online, vamos investigar formas de ler e escrever a fúria a partir de autoras como Valeska Torres, Ana Kiffer, Grace Passô, Adelaide Ivanóva, entre outras.
As informações completas estão no Formulário de inscrição!
Obrigada por ler a Trajetos de escrita! Se você gostou desse texto, me ajuda a chegar em mais gente?
Mais uma vez você me tocou profundamente com todo o texto, mas foi um clique maior quando falou: "E é por isso que, em seu caminho, Kehinde algumas vezes se perde, mas nunca se abandona."
Com todas as conversas, vivências, permissões, decepções que 2023 me trouxe até aqui acho que finalmente eu estou aprendendo a me perder sem me abandonar. Talvez essa seja a chave pra viver a liberdade que desejamos viver, sem ter medo de destruir o que sonhamos em ser e construímos todo dia. Obrigada por dividir seus encontros por aqui, eles me transformam e me preparam para outros encontros que quero e preciso viver.
As citacoes que vc traz já são por si mesmas baita intervenções. É um calhamaço que pretendo me debruçar com dedicação, mas ainda não chegou a hora. Gostei de ler seu encontro com a obra, espero que caminhos férteis apontem logo ali em frente. 🌷