Antes de entrar contava a história do primeiro show que assisti ali.
Eu era muito nova e acabei chorando, bêbada de tequila adulterada. Isso foi há uns 15 anos – acho que agora nem vendem mais essas bebidas suspeitas na porta. Essa é uma das questões de morar por muito tempo na mesma cidade. Não importa quão grande ela seja, as memórias ainda vão estar por aí. De repente, era só uma selfie no espelho mas seu passado te acena e será que passou?
Tenho lá minha obsessão com a memória. Gosto de manter todos os meus vestígios por perto. Lamber minhas versões antigas com zelo. De vez em quando, a gente acaba abrindo feridas. E o que acontece se eu olhar mais fundo? Caio no buraco ou me enxergo com mais nitidez?
Ando também um pouco obcecada com duplos. Uma das ferramentas para se desdobrar são os espelhos. Lugar de criar ou de perder contornos? Depois da minha miragem ser interrompida, vi em você um tempo em que vivi. Por um instante, estive em dupla: quem eu sou agora e aquela que um dia você conheceu. Uma atualização da distância ou do que continua?
Saudade às vezes é uma palavra tão pequena.
Quando a música começa parece possível viver de outra forma. Eu não preciso tentar entender. A voz de Anelis expurga rupturas. É a extinção da linearidade. Estamos todas aqui, reunidas. E como na primeira vez que pisei nesta lona: choro sem saber direito o porquê.
Talvez seja só por estar viva, presente neste momento que logo já vai passar e que, de alguma forma, guarda também em si todas as perdas como os contornos de quem eu sou agora.
A gente se despede no escuro prolongando esse tempo fora do tempo por só mais uma volta.
No dia 30 de junho, tive a sorte de assistir ao show do Sal, álbum novo da Anelis Assumpção, no Circo Voador. Uma dessas noites que roubam as nossas palavras pra nos deixar existir plenamente no corpo. É algo impressionante o que Anelis faz no palco. Ela produz uma linguagem em que os sentimentos vazam dos nomes que inventamos para encaixá-los. De repente, estamos ali imersas em algum lugar fundo, antigo, onde a tristeza é um movimento, assim como o prazer, e estar viva é fazer parte desse trânsito.
Não é de agora que a presença e a sensibilidade de Anelis me encantam e queria aproveitar para compartilhar um pouco da minha admiração pelo trabalho dessa artista brasileira do nosso tempo.
No dia seguinte ao show, fiquei pensando como foi uma experiência densa. E essa é uma qualidade que me parece subestimada. “Denso” pode ser o oposto de “leveza”, mas não é a mesma coisa que “pesado”. Denso é o que é incorpado, tem um caldo espesso, camadas profundas. A leveza pode ser densa, mas não a leveza de quem evita sentir o que vai além da superfície.
A densidade me atrai e é uma das características que me faz ser apaixonada pela obra de Anelis Assumpção. Porque suas músicas, como a vida, se recusam a ser unidimensionais, suas letras e sons não se limitam a um sentimento dominante, comunicam camadas, sentidos ambíguos, deslizantes, inesgotáveis.
Você ouve e sabe que o luto é sempre ele e alguma coisa a mais, o amor é também tantas vezes ele e alguma angústia que vem junto e a alegria pode ser o triunfo de uma insistência de vida com uma pontinha de azul.
Acredito que a densidade da obra de Anelis vem de um trabalho cuidadoso de mergulho e investigação. Cada um dos seus discos parte de um conceito, uma ideia, um conjunto de obsessões. Eu gosto muito de artistas que entendem a criação como um processo que envolve pesquisa, tempo para digerir, apurar, fazer e refazer até encontrar uma forma de chegar no público.
Sinto que os álbuns de Anelis são produtos desse tipo de mergulho e, por isso, são universos únicos que nos entregam novas ferramentas para sentir e estar no mundo. E, no seu caso, essa investigação é um trabalho não só de fabricar uma linguagem a partir da música, mas também da cena que se cria no palco, da capa do disco, das imagens dos clipes, ou seja, é uma criação que envolve diferentes expressões.
Sal, por exemplo, se iniciou como uma investigação sobre o azul, uma cor-sensação que quase foi o nome do disco, mas que ganhou novas camadas ao aparecer na identidade visual junto com o branco e o laranja. Para chegar nessa linguagem, Anelis contou com a parceria da artista plástica Kika Carvalho, que assina a capa com a tela “Lover” e também criou o belíssimo cenário do show.
O trabalho coletivo feito a partir de uma experiência de convívio é um traço constante nos álbuns de Anelis. Em Sal, as parcerias foram exclusivamente mulheres, em majoritariamente mulheres negras. Anelis convidou diferentes cantoras e compositoras para participarem como produtoras de cada faixa do disco. Essa foi uma escolha política movida pelo seu desejo de ver mais mulheres em posições de liderança no meio musical.
Acho admirável como Anelis ergueu para si mesma esse lugar consolidado de liderança ao assumir a direção de Sal e conduzir o trabalho de cada uma das profissionais escolhidas. Em entrevista para Brenda Vidal, Anelis contou um pouco sobre a tarefa de ser diretora como uma experiência de ter convicção daquilo que se quer:
Acho que vou ficando cada vez mais experiente em criar as possibilidades antes, sozinha, fazer esses desenhos mentais pra dizer: é isso que eu quero. Pra conseguir chegar e falar que é o que quero. Quando a gente tá certa, a gente orienta e dirige bem, e as pessoas que são dirigíveis gostam disso. […] Essa é a coisa. Quando eu dirijo muita gente, eu tenho que saber o que eu quero de cada pessoa. O que cada um pode dar, como eu posso puxar mais um jeito que eu sei que a pessoa tem. Uma hora você tem que saber quando chega de opiniões. Que vai ser do jeito que você tá dizendo, que é a forma como você quer. Acho que quanto mais a gente sabe o que quer, mais a gente dirige bem quem tá trabalhando junto.
Achei extremamente poderosa essa ideia de que assumir a direção é saber entender e comunicar com clareza aquilo que se quer. Defender o que a gente quer me parece uma habilidade fundamental de sobrevivência para quem escolhe ser artista.
Anelis, como eu, é taurina e leva a teimosia desse signo em seu modo de firmar compromisso com seu trabalho, sua criação. Na mesma entrevista, ela conta para Brenda Vidal sobre as dificuldades financeiras para lançar um disco com a qualidade de Sal sem contar com a ajuda de grandes financiadores, precisando levantar sozinha um financiamento coletivo. Anelis diz:
Era fazer o financiamento ou fazer um empréstimo pessoal, vender um carro, enfim. Mas esse disco tinha que sair; tem uma hora que começa a ficar desesperador, porque o disco quer sair.
É terrível que ser artista no Brasil imponha escolhas tão arriscadas como precisar investir dinheiro do próprio bolso na produção de sua obra. Apesar desse cenário desolador, não deixo de ficar tocada com essa afirmação.
Porque – sem querer romantizar a nossa precariedade – é preciso afirmar o compromisso e a confiança em seu próprio trabalho criativo para topar assumir esse tipo de risco. É preciso reconhecer que existe algo importante ali, algo que pede para nascer e vir a público.
Muitas vezes a gente não consegue ter esse olhar, esse cuidado, com o que estamos produzindo. E esse compromisso na base da teimosia é algo que eu gostaria de cultivar por mim e pela minha criação também.
Oficina criativa: Escrever em 1° pessoa
Em agosto, lanço uma nova oficina criativa pela Mulheres que Escrevem, dessa vez focada na escrita em 1º pessoa. Ao longo de dois encontros online, vamos passear entre o diário, a carta e algo mais ✨
Quem se inscreve na oficina, além de participar dos encontros, recebe um dossiê de leitura com textos de autoras como Ana Cristina César, Conceição Evaristo, Flávia Péret, Bianca Gonçalves, Susan Sontag, Rafaela Miranda, entre outras.
A oficina será realizada via Google Meet, nos sábados 12 e 19 de agosto das 10 às 12 horas.
As informações completas estão no Formulário de inscrição. Vem escrever comigo?
Até a próxima,
beijos,
Taís 💕
Vou ao show de Anelis hoje, que gostoso ler seu relato antes de ir. E sou super fã do trabalho da Kika, minha conterrânea 😻
"Por um instante, estive em dupla: quem eu sou agora e aquela que um dia você conheceu. Uma atualização da distância ou do que continua?
Saudade às vezes é uma palavra tão pequena."
Thaís, te ler é sempre tão acolhedor. Não só me explica e reafirma em mim o que sinto ou já senti em algum momento, mas expande essa definição e me conecta com outras camadas do sentimento. Tu é densa, complexa; mas sem ser nenhum pouco inacessível ou difícil. Não conheço ainda o trabalho da Anelis, mas vou reparar isso em breve. Só quero te dizer que tu é como ela. Te admiro.