Existem muitos momentos inesperados no fim de um amor.
Um deles é quando passa e você sobrevive.
Por algum tempo, não soube o que fazer com a sua memória até encontrar a minha forma de lidar com o que fica.
Esse é um processo que não tem como ser previsto. A cada dia gente vai inventando algo parecido com um jeito. Pouco a pouco, o corpo aprende a manejar. Até que outros hábitos começam a se sobrepor às lembranças, sem nunca apagá-las.
*
Preparar para mim o que um dia você já me ofereceu. Aprender que, às vezes, é só uma questão de lembrar dos ingredientes, realizar uma etapa de cada vez e contar com a intuição. Estar presente, atenta ao que vai se transformando.
Saber me alimentar tem sido meu jeito de ainda sobreviver ao fim, levando comigo algo de quem fui.
*
Hoje preparei mais uma comida que me lembra você.
Parece que alguns sabores eu demorei mais tempo para sentir falta ou vontade.
Se eu for sincera, não foi exatamente aquela receita sua. Eu vi um vídeo da Paola Carosella. Ela frita as berinjelas, eu fritei as berinjelas. Então, poderia dizer que se trata de uma outra receita. O preparo, com certeza, não é o mesmo.
Mas, no molho de tomate com calabresa, estava você e um lugar que eu fui.
Lembro do dia que você fez esse prato para mim. Apesar de saber tão pouco, a sua tristeza estava ali, a sua inquietação também.
Era a segunda vez que nos econtrávamos. A terceira noite juntas.
No dia anterior, eu disse que me sentia muito vulnerável, porque morria de medo.
Você tentava desviar a todo custo de uma perda insuportável.
Não lembro o que fizemos pela manhã. Os dias se passavam todos dentro do seu apartamento. A primeira vez que você segurou minha mão foi no caminho para a farmácia.
Em algum momento, sua mãe te ligou e depois você foi cozinhar. Para se distrair, para se ocupar. Tocava aquela música do Black Pumas.
Eu te observava em silêncio. Sabendo que sabia tão pouco e querendo tanto o que desconhecia.
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Você disse que inventou esse prato com o que tinha na geladeira. Molho de tomate, linguiça calabresa, berinjela.
Antes de você, eu não gostava de berinjela. Mas não tive coragem de te dizer não.
Talvez ninguém mais nesse mundo tenha me ouvido tanta vezes dizer “sim”.
Você tinha esse talento de desafiar minha ordem. Ao seu lado, expandi meu paladar, tentei gostar de trilha, reagi até a um assalto.
Dizia sim para você, mas também para o que eu queria.
Uma parte de mim aproveitava estar apaixonada para ser também um pouco como você. Destemida. Você me oferecia e eu provava.
Adorei a lasanha que você cozinhou para mim - e que hoje sei que você fez para ficar um pouco sozinha com a minha companhia por perto.
Depois de um tempo juntas, esse prato se tornou uma coisa nossa. Você se ocupava do molho e eu era responsável pela montagem. Repetimos esse passo a passo felizes, entediadas, tristes, perdidas.
*
Quando a paixão começou a chegar ao fim, eu voltei a proteger meus medos.
Faltou coragem para mergulhar com você naquela viagem.
Fiquei só te olhando saltar sem saber que não haveria outra chance.
Me custou um tanto reconhecer isso.
Eu nunca mais vou poder mergulhar em alto mar com você.
Mas talvez eu ainda possa, algum dia, fazer isso por mim.
*Esse ensaio faz parte de um projeto de escrita até o momento chamado “Receitas para o fim” (ainda sem previsão para ser publicado).
Criei uma playlist de fossa sapatão inspirada nas receitas para o fim que está disponível aqui.
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Obs: Na última edição, eu disse que ia publicar um texto comentando Aftersun. Ele está nos rascunhos e deve sair em março! Até breve, Taís!
Que bárbaro esse projeto "Receitas para o fim". Acabo de lançar "Contos para Saborear", que reúne histórias e receitas. Penso que Literatura e Culinária são duas ares que falam muito com a nossa ancestralidade, nossa cultura e forma de ver o mundo. Tudo a ver. Quero muito ler "Receitas para o fim". Beijos.
chorei.