Não gosto de ter uma programação fixa quando estou viajando. Acho importante dar espaço para as descobertas. Foi numa dessas brechas que vivi um momento muito especial em Ouro Preto.
Um grande mural com passarinhos bordados chamou minha atenção.
Da rua, eu podia ver, através das janelas, linhas e cores. Entrei na casa e entendi que eram obras de pessoas que estudavam na FAOP, Fundação de Arte de Ouro Preto.
Até que fui ler um dos painéis, esperando um texto institucional insosso, e descobri que era mais do que isso.
O que encontrei foram recados de carinho, amor e confiança.
Pessoas que eu não conhecia escreviam sobre e para Ana – alguém que até então eu também não fazia ideia de quem era, mas que, pelo contexto, compreendi que havia sido uma dedicada mentora.
Eu estava, na verdade, em uma exposição dupla: De um lado, ficavam as obras individuais de Ana Célia Teixeira – artista e professora que durante trinta anos viveu e deu aulas de pintura e bordado em Ouro Preto – e, do outro, as criações de pessoas que foram suas alunas.
Conforme eu lia aqueles depoimentos, era tomada por uma emoção muito grande.
Eram textos de pessoas que fazem arte, sem necessariamente reivindicar para elas o status de artista. Pessoas que se dedicam a experimentar um pouco mais, aprender novas técnicas, descobrir novas formas de se expressar e que, através da convivência com essa professora, puderam construir uma conexão criativa.
Os textos diziam coisas como:
não me tornei artista, mas perdi o medo de arriscar...
Nunca tive a pretensão de ser artista. Até fazer aula com a Aninha.
Ela me mostrou Marcel Duchamp, me mostrou Frida Kahlo, me ensinou a entender que o corpo sofre e a ideia salva, às vezes.
Lendo essas palavras, lembrava que ser artista não é só se identificar com um um rótulo consolidado que te mantém em um determinado lugar ou grupo social.
Ser artista tem mais a ver com um tornar-se, com uma escolha, que exige uma série de outras escolhas em um trabalho diário. É um fazer.
E esse fazer apresenta muitas possibilidades de fruição, de estar presente na vida, imaginando, criando e se conectando com outras pessoas.
Me peguei pensando na arte que criamos em silêncio, ou em grupos pequenos, longe de holofotes, fora do que é reconhecido como Arte de Verdade.
Será que toda criação não acontece primeiro neste lugar quase secreto, nessa abertura de uma intimidade?
Antes da publicação, dos lançamentos, das feiras e festas, dos museus e exposições, dos prêmios e da legitimidade de um campo artístico estabelecido, vem essa mesma busca: um desejo de conexão, consigo mesme e com outres, alguma coisa que permaneça no tempo ou transforme o curso do tempo, uma descoberta, a tradução de um sentimento que existia sem nome, o que é, por fim, um gesto de encontro, sensibilidade, conexão.
Repito duas vezes essa palavra porque, ao fim, o que senti vendo essa exposição foi o maravilhoso espanto de me conectar com a arte e a vida de pessoas que nunca chegarei a conhecer.
O tempo que Ana Célia dispôs para criar e ensinar arte de alguma forma continua vivo, em movimento, chegando até mim, alguém que não teve a chance de a conhecer, mas que está ali, segurando o choro, diante daquilo que ela tornou possível existir por um ato de imaginação.
Outra palavra vem colada à conexão: comunidade.
O legado que deixamos quando escolhemos trabalhar com criatividade nunca é individual, porque criar sempre envolve encontros e esforços coletivos.
Esse fazer, mesmo quando solitário, envolve uma alteridade, um endereçamento, um ponto de partida, alguém que te inspira, uma pessoa interlocutora.
Isso ficava evidente para mim lendo os recados des alunes de Ana Célia.
Como alguém que também é artista e professora (nesse eterno estar se tornado), saí da exposição refletindo sobre como venho me alimentando e dando de comer nas comunidades criativas em que faço parte. E em como, no fim do dia, é esse o legado que importa, é isso que nos mantém pessoas vivas, desejantes, abertas às descobertas.
E, você, como tem cuidado do seu desejo de conexão? Com quem você cria?
Oficina criativa: Fisgar pelo estômago
Em agosto, ofereço uma nova oficina criativa: Fisgar pelo estômago. Essa é uma oficina para ler e escrever a partir da comida. Mas os sabores nunca vem sozinhos. Cada prato é acompanhado por uma sensação: desejo, fartura, acidez, deleite, jejum, amargor. Quais histórias pode uma refeição contar?
Quem se inscreve na oficina recebe um material de leitura com textos de Carol Bensimon, Laura Cohen, Michelle Zauner, Anelis Assumpção, entre outres.
A oficina será na segunda dia 26 de agosto das 19h às 21h30. Garanta sua vaga preenchendo o Formulário de inscrição.
Ainda sobre comunidades criativas:
Visitei a exposição na FAOP com obras de Ana Célia Teixeira e das pessoas que foram suas alunas no mesmo dia em que retornei para Belo Horizonte para dar a oficina “Escutar o infantil, escrever a infância” no Estratégia Narrativas e lançar meu novo livro, Expansão Marítima.
Essa coincidência foi certeira, porque, em Belo Horizonte, me senti também emocionada com a experiência de fazer parte de uma comunidade criativa. Todas as pessoas que encontrei na cidade são pessoas que conheci por causa e através da escrita.
Acho mesmo que a gente escreve para se encontrar, para criar conexões que não existiriam se não cometêssemos a ousadia de colocar no mundo, de compartilhar com outras pessoas, algo que imaginamos sozinhes.
Voltei dessa viagem sentindo que há algo de muito precioso na intimidade que criamos nessas comunidades criativas.
Escrevi um breve relato sobre a experiência de dar uma oficina no
aqui:E, por fim, uma obra da Ana Célia Teixeira que diz: "Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?"
A minha suspeita é que o resto fica entre nós, entre aquilo que poderíamos ter criado e o que de fato colocamos no mundo, uma matéria invisível mas concreta escapando por aí com algum poder de contágio.
eu fui professora de pintura por muitos anos, e isso era algo que me marcava, é como ensinar as pessoas a fazer mágica. do nada elas passam a conhecer um mundo novo.
Que bonito. O final do seu texto me lembrou um trecho do filme “Antes do amanhecer”, quando a Celine diz “Se há algum tipo de magia nesse mundo, deve estar na busca de compreender alguém, compartilhar algo.”