Esses dias estava lembrando do poema da Angélica Freitas em que ela repete uma série de vezes a frase “eu durmo comigo”. E fiquei me perguntando sobre o que significa, nesse momento da minha vida, dormir e acordar comigo mesma.
Em “eu durmo comigo”, encontramos essa forma estranha em que parece existir, além do corte dos versos, um outro corte representado pelo uso da barra “/”. Dentro de um verso há outro possível verso, mas que não se separa totalmente, fica ali e marca a sua separação com apenas um traço, sem precisar cair, sem precisar se deslocar tão bruscamente. Ou talvez seja um poema em bloco de notas e não exista, na verdade, verso algum. Nesse caso, a barra indicaria onde o poema deveria ser quebrado. Nessas duas possíveis leituras a forma do poema insinua uma continuidade. Alguma coisa não se rompe, ainda que se separe.
Talvez seja isso que a poeta deseja tentar enquanto repete seis vezes a expressão “eu durmo comigo”. A repetição é quase um modo de se convencer de que é possível, nesse gesto tão humano de abandono da própria consciência, permanecer presente para si mesma. Sair de si e ainda assim estar consigo mesma – e não resisto em pensar na aproximação entre dormir e se apaixonar. Quando leio esse poema, quando leio em voz alta as suas repetições percebendo como o verbo “dormir” vai se transformando e “durmo”, “dormindo” e “dormir”, sinto como se a sua narradora fosse alguém se esforçando para abrir um espaço. Um espaço que é também uma fronteira, uma margem entre ela e quem pode ou não a acompanhar. A barra que torna possível garantir a existência desse lugar “ao lado”.
Tem algo muito poderoso em transformar a solidão em um ato de presença. A formulação “comigo” convoca a gente a reconhecer a nossa própria companhia. Mais do que afirmar que podemos contar com nós mesmas, o poema de Freitas, em sua repetição incessante, parace servir como um lembrete para não se esquecer de si mesma.
Quase tão difícil quanto dormir comigo é acordar comigo mesma. É estar desperta dentro desta fronteira, enquanto as notícias, as demandas e notificações me atropelam.
Por muito tempo, eu tive um sonho: uma imagem idealizada de tomar café da manhã sozinha, em completo silêncio, lendo meus livros, escrevendo minhas coisinhas. Era um desses sonhos meio bobos, mas estruturantes, porque com uma imagem uma série de movimentos pode se ordenar. O café da manhã é só um indício de um desejo imenso de ter tempo e espaço para mim.
Não sei vocês, mas eu não fui educada para respeitar o meu próprio espaço, tampouco para cultivar e proteger um território que seja irrestritamente meu – e isso é algo que só entendi depois de uns bons anos de terapia. Manter essa fronteira frágil que me permite estar comigo é um exercício que demanda prática, porque é tão fácil se distrair, se confundir, se misturar.
Inventar rituais tem sido uma prática de estar presente sem abrir mão da fantasia e do prazer. É também uma estratégia para que a rotina da vida adulta não seja tão dura.
Todas as manhãs eu me agarro nas repetições da materialidade. Acordo comigo mesma e, antes de pensar no que falta, no que é preciso fazer, na minha coleção de atrasos, paranoias e remorsos, me pergunto: o que vou preparar hoje para mim?
Escolho se vai ser tapioca ou cuscuz, ou aquele pãozinho da padaria que eu amo, às vezes aipim, ovos mexidos, rocambole de goiabada ou sonho de doce de leite (eu sei, preciso adicionar frutas, grãos, vitaminas, quem sabe depois do carnaval).
Acordo comigo mesma. Passo o café com calma para que a água entre em contato com todo o pó. Arrumo a mesa, combino a louça com meus jogos americanos comprados no bazar da igreja. Me esforço para que seja bonito. Insisto em encontrar alívio em detalhes que não mudam nada, mas que são significantes para mim.
Escolho me dar um pouco de conforto, carboidrato e beleza. E, nos dias difíceis, é essa insistência que me faz levantar da cama.
Estar presente para mim talvez seja a minha maior ambição em 2023.
Enquanto escrevia esse texto e pensava no poder da repetição e dos rituais dentro da nossa rotina, lembrei do trabalho de Carrie Mae Weens em “The kitchen table serie”.
Nessa série de fotos, dois elementos se repetem: uma mesa e uma mulher. O que acontece em torno dessa cena varia. Um homem aparece – e de início a sua imagem é turva, até que ele ganha contornos nítidos e ofusca o rosto da mulher -, uma criança, amigas. Há jogos, livros, bebidas. Há companhia e solidão. As imagens convocam muitos sentimentos, do desejo à tristeza. Mas, independentemente das mudanças, de quem chega e de quem parte, estão firmes ali a mesma mesa e a mesma mulher.
Acho que há algo de muito poderoso em reparar na solidez dessa continuidade.
Em torno dessa mesa, a vida acontece, e essa personagem, essa mulher que desconhecemos, se mantém presente ali. É só ela quem conhece os acontecimentos que se passam dentro desse território tão banal e significativo: uma mesa em sua cozinha.
E, de algum modo, quando testemunhamos a sua presença, somos convocadas a reconhecer o ponto onde só nós estamos.
Oficinas criativas e laboratórios de escrita:
Em janeiro, vou mediar o Laboratório de escrita recorrente, a 3º edição do Laboratório criativo investigando projetos de escrita e também a Oficina de leitura e escrita Mulheres que Escrevem de Verão. Estou muito animada para começar o ano já fazendo o que mais amo: compartilhando leituras coletivas e contribuindo para alimentar processos criativos.
Como os laboratórios são um trabalho mais focado, temos um número restrito de participantes e as vagas já estão esgotadas. Porém, ainda dá tempo de se inscrever na Oficina de leitura e escrita Mulheres que Escrevem de Verão!
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Até logo, um beijo e um feliz Lula de novo!
Taís
"Insisto em encontrar alívio em detalhes que não mudam nada, mas que são significantes para mim."
Eu amei isso.
e eu que já dormi de mãos dadas comigo mesma...