“Estou começando a ser quem eu sempre fui”, ouço essa frase inúmeras vezes na minha primeira noite em Belo Horizonte.
É uma fala de Querença, peça da Breve Cia. que estava em cartaz no FIT - Festival Internacional de Teatro. O texto deste espetáculo vai se montando e desmontando em uma repetição que transforma, a cada vez, o sentido daquilo que é dito.
“Estou começando a ser quem eu sempre fui”, às vezes era um rompante de euforia, mas também poderia assumir a forma de uma inquietação, um cansaço, uma dúvida. Estou começando a ser quem eu sempre fui?
Em algum momento, aparece uma fala que não se repete - ou, pelo menos, eu acho. Algo como “estou começando a ser quem eu nunca fui” ou “estou começando a ser quem eu nunca pude ser”.
A memória me falha. Mas na hora pensei que uma frase, a que se repete, não pode mesmo existir sem a outra, a que é dita só uma vez.
Começar a ser quem sempre foi é um gesto que implica também em ser quem nunca foi.
Faz sentido? Eu acho que sim. Mas parece ser mais fácil de sentir do que de explicar. Em algum tempo espiralar, o começo pode ser simultaneamente ineditismo e retomada, continuidade e ruptura.
Foi com essa frase (ou essas frases) na cabeça que cheguei, alguns dias depois, em Ouro Preto, dezessete anos após a primeira vez em que estive na cidade.
Eram as férias de julho de 2007, o fatídico ano em que prestei o vestibular, um evento que, supostamente, decidiria todo o resto da minha vida.
Foi o ano em que pensei muito em quem eu queria ser, quais eram meus sonhos e como entrar numa universidade poderia expandir minhas possibilidades de vida. Claro que foi um período de muita ansiedade, mas também foi o ano em que eu li A náusea, ouvi a discografia inteira da Janis Joplin, escrevi horrores nos meus caderninhos, descobri que também sentia bastante desejo por garotas e imaginava o que poderia fazer para um dia me tornar uma escritora.
Nesse ano em que eu estava tão envolvida com a ideia de quem ainda iria me tornar, chegar em uma cidade nova foi ganhar uma evidência concreta de que a vida era, de fato, muito maior do que a minha realidade adolescente.
Fiquei deslumbrada. Era a segunda vez que eu saia do meu estado e, por mais que Minas Gerais não fosse tão distante, era longe o suficiente para alimentar a fome de mundo que eu sentia.
Lembro que fiquei impressionada com a UFOP e seus estudantes e imaginava se eu também não poderia prestar vestibular para uma universidade fora do meu estado, como uma desculpa perfeita para sair de casa, me mudar, começar uma fuga.
Nunca cheguei a tentar o vestibular para a UFOP, mas acabei indo estudar em uma universidade fora da minha cidade, a UFF, em Niterói.
Agora, aos 34 anos, voltei para Ouro Preto em uma brecha da tour de lançamento do Expansão Marítima. Meu desejo era passar uns dias de férias em uma cidade pequena e mais silenciosa do que as capitais em que estive circulando (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). Mas meu desejo era também me reencontrar com aquela adolescente, com a sua ambição e fome de mundo.
Sem dúvida meus olhos agora são bem menos ingênuos e já viram muito mais do que a Taís de dezessete anos atrás. Ainda assim, quando chego sozinha em uma cidade nova e ando pelas suas ruas tentando descobrir para onde vou porque não tenho um destino certo, me sinto muito próxima desse garota.
E durante os três dias e duas noites que passo só com minha companhia subindo e descendo ladeiras não sei ao certo em que tempo me encontro, se sou a adulta indo atrás da adolescente ou a garota espiando quem um dia vai se tornar.
Entre essas duas versões de mim encontro um grande nunca que sempre esteve ali pedindo espaço para aparecer.
Eu, em dupla, olho para essa coisa inédita e atemporal sem ter um nome para lhe dar e penso: quem sabe é agora. Ou como ouvi a Juçara Marçal cantar ao vivo alguns dias depois na Autêntica: Let’s play that.
O lançamento de Expansão Marítima em Belo Horizonte foi muito lindo e afetuoso. Na próxima edição da Trajetos de Escrita vou continuar contando sobre essa viagem e como ela me fez pensar sobre ser artista, criar e trabalhar em coletivo.
Enquanto escrevia essa edição da Trajetos de Escrita, a querida publicou no seu Instagram um texto honrando os caminhos traçados por sua versão mais jovem e achei uma coincidência muito bonita. Vale demais a leitura:
Ó que notícia boa, agora eu faço parte do Brota, programa de parceria da Seiva, uma escola, editora e comunidade criativa.
Como parte do Brota, estou fazendo o curso Segredos do Roteiro e curtindo demais. Em breve vou falar mais sobre essa experiência e também sobre os próximos lançamentos da Seiva 🌱✨
"não sei se sou a adulta indo atrás da adolescente ou a garota espiando quem um dia vai se tornar" caramba, Taís. Pegou forte aqui, hein 🥲
Eu me identifiquei muito com essa edição! Mês passado também voltei a Ouro Preto depois de mais de 10 anos e foi uma experiência profunda de reencontro com a minha adolescente. Acredito que as viagens não são fugas e sim reencontros com partes de nós que ficaram por aí. Algumas cidades são verdadeiros portais e nos ajudam nessa busca. Já quero ler o seu livro 🫀