Escutar o infantil, escrever a infância
Dentro dessa história de opressão social, a gente separou o que é selvagem e o que é infantil e a gente tem o infantil e o selvagem de forma muito abraçada na nossa história, que é aquilo que precisa ser domado, consertado, oprimido.
Em um episódio do podcast Café com cuscuz, Elisama Santos apresenta como a formação colonial aproxima o infantil do selvagem em contraposição ao que é racional, civilizado, sábio. Mais do que uma oposição há aí uma hierarquia na qual aquilo que supostamente escapa à racionalidade e ao que foi imposto como civilizado precisa ser domado, silenciado.
Esse é um dos temas que atravessam meu último livro, Expansão Marítima. Em “A dupla”, uso a imagem do arcano maior A força para falar sobre essa relação binária entre razão e emoção, civilizado e selvagem, intelecto e natureza, mente e corpo, entre outros pares hierárquicos que foram definidos por uma ideologia de dominação ocidental branca e europeia.
Investigar o que a fera tem a dizer é um dos movimentos da escrita desse livro. Ir ao encontro do que é selvagem é também um exercício de escutar o infantil.
Escrevendo o Expansão marítima, entendi que o infantil está sempre no presente, as marcas do que aconteceu na infância seguem falando e quando investigamos o que elas têm a dizer somos capazes de criar um território entre tempos, transformando simultaneamente o que aconteceu no passado e o que pode ainda ser o nosso futuro.
Assim, compreendi também que o tempo do livro precisava ser diferente do tempo linear dos acontecimentos. Por isso, no primeiro ato, duas infâncias se atravessam, a infância de uma filha que é assombrada pelo desamparo da infância de seu pai. As memórias de ser uma criança inventando historinhas dentro de uma piscina na zona norte carioca são sobrepostas às imagens, apenas imaginadas por essa filha, das narrativas que seu pai, um homem adulto, segue contando sobre a sua própria infância.
Ao cruzar as vidas dessas duas crianças em um mesmo tempo, tentei criar a partir da escrita um lugar de encontro e reconciliação. Um lugar onde essa filha já adulta pudesse não só ouvir e acolher o infantil que segue falando dentro de si, mas também aquele que move, muitas vezes de forma errática e frustrante para ela, as escolhas do menino que seu pai um dia foi e talvez ainda seja.
Transmissões, heranças, volta ao tempo e tentativas de reparação são temas recorrentes na literatura brasileira contemporânea.
Se às vezes o infantil invade o presente, em outros momentos é o percurso contrário: às vezes o lugar em que nos encontramos nos faz acessar memórias do passado com uma outra perspectiva, pinçando nelas experiências que antes poderíamos até sentir, mas, talvez, não compreendêssemos em toda a sua importância. Essas experiências podem ser traumáticas, contar de dores e violências, mas também de luminosos instantes de amor e cuidado.
Quem nos tornamos nos dá repertório e, principalmente, linguagem para elaborar o passado em uma percepção que traz à tona marcas que sempre estiveram lá, mas só agora podem ser devidamente nomeadas.
Como é o caso do poema “Leitoras” do Floresta, em que uma singela e quase banal memória de infância se revela como uma gênese de quem essa criança um dia viria a ser. É só depois de ser mais do que um leitor, um poeta e escritor, que o narrador do poema compreende que o gesto de ler um gibi com a ajuda de sua mãe fundou a pessoa que veio a se tornar. A pergunta do último verso incita a sensação entre tempos que escutar o infantil provoca: mesmo sem saber, lá naquele passado já estava o seu futuro.
Além da escrita do Expansão Marítima, a infância também está muito presente na pesquisa que estou realizando no doutorado em Literatura, cultura e contemporaneidade na Puc-Rio. Como um desdobramento dessas duas investigações, criei a Oficina criativa: Escrever a infância.
Essa oficina criativa investiga como a infância é um tema recorrente na literatura contemporânea. Ao longo de três encontros online, vamos ler textos de diferentes gêneros literários em que a infância é representada, analisando quais questões e problemáticas esse recorte temporal suscita. Além disso, ao fim de cada encontro será proposto um exercício de escrita criativa.
A oficina será online nas quartas do dia 23 de outubro a 06 de novembro das 19h às 21h.
Você pode conferir as informações completas e se inscrever neste link.
Cara Taís, escrevo para agradecer pelas suas palavras. Como de costume, chegaram aqui como um presente. Acho tão importante que tudo isso seja dito. Que alegria que você tem a gana e a sabedoria para fazê-lo. Um grande abraço de Campinas pra você
Queria tanto fazer essa oficina, pena que o fuso horário não me permite :(