Escrever é uma prática de autonomia
uma conversa a partir de Virginia Woolf, Gloria Anzaldúa e Sandra Cisneiros
Assumir a agência de um desejo não é algo simples se você foi educada para se diminuir.
Na última edição dessa newsletter, escrevi sobre o processo de encontrar uma casa para mim.
Há um tempo penso na relação entre a escrita e o cuidado com uma casa própria, entre a possibilidade de escrever e de ter um espaço - físico e íntimo - que seja só meu.
Não é uma ideia nova, é claro. Já em 1929, Virginia Woolf escrevia uma conclusão parcial em Um quarto todo seu:
“uma mulher precisa ter dinheiro e um quarto só seu se quiser escrever ficção”.
Anos depois essa frase foi cristalizada como uma máxima quase inquestionável que um certo feminismo liberal adora propagar. É preciso desviar de uma leitura que restringe as palavras desse texto a uma compreensão individualista e meritocrática sobre a liberdade.
Em vez de uma leitura que busca uma saída óbvia, que se fixa em uma conclusão, o que Um quarto todo seu pede às suas leitoras é uma atenção à ambivalência, às bifurcações, aos diferentes caminhos que esse texto aponta.
Talvez exista uma abertura na máxima pragmática que esse ensaio propõe. Talvez o que Woolf escreve não seja necessariamente o que ela acredita, mas uma possível saída que coloca na boca de uma personagem ficcional para entregar às mulheres escritoras de seu tempo histórico uma fala suficientemente encorajadora.
Um quarto todo seu é, afinal, um texto estranho que toma para si diferentes formas de escrita. Nasce como uma apresentação oral que assume uma narrativa, um “era uma vez”, para revisar o que uma certa história da literatura e da arte destinou às mulheres até então. Depois, essa fala é fixada em um texto e rotulada como um ensaio. Mas é preciso não esquecer que dentro dessa teoria mora uma ficção.
Virginia Woolf inventa uma história para poder falar sobre a relação entre as mulheres e a ficção. Hoje me pergunto se o quarto próprio, se o teto todo seu, não é apenas uma necessidade prática, mas principalmente uma imagem de autonomia.
Talvez para se autorizar a escrever seja necessário encontrar meios para criar um espaço - físico e subjetivo - que seja só seu.
Em 1980, 51 anos depois da publicação de Um quarto só seu, Gloria Anzaldúa escreve “Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo” e alfineta Virginia Woolf em um convite a uma autonomia radical diante da escrita:
“Esqueça o teto todo seu - escreva na cozinha, se tranque no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da assistência social, no trabalho ou entre refeições, entre o sono e a caminhada”.
Ao contrário de Woolf, uma mulher branca e rica, Anzaldúa, como uma chicana e filha da classe proletária, não tinha condições materiais asseguradas para se dedicar à escrita. Mas, apesar da falta de dinheiro, buscou meios de continuar escrevendo. Essa busca a levou, inclusive, a criar uma escrita que - como a de Um quarto só seu - assume uma forma esquisita, uma escrita híbrida na qual os gêneros perdem suas fronteiras.
É assim, por exemplo, a sua carta para as mulheres de cor escritoras do terceiro mundo, uma carta que é também um ensaio que contém um diário e poesias. Anzaldúa fabrica o seu próprio modo de escrita como um meio de insistir nessa prática, produzindo, assim, um pensamento teórico e poético único.
Nesse texto anfíbio, ela nos convoca a pensar o que nos leva até à escrita enquanto lista os motivos que a levam a insistir nessa prática:
“Escrevo para registrar o que os outros apagam quando eu falo, para reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Pra ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, me preservar, para me fazer, pra ter autonomia”.
Se autorizar a escrever é também encontrar quais são os seus parâmetros. É escolher o que você deseja escrever e ganhar consciência de por quais motivos a escrita é importante para você.
O processo de se autorizar como autora (inclusive de sua própria vida) talvez seja parecido com a construção de um espaço cujo cuidado e manutenção cabem inteiramente a você.
Escrever é, afinal, uma prática que nos convoca a movimentos de autonomia.
Acho que, talvez, seja isso que Virginia Woolf tenta nos alertar. O quarto e o dinheiro são meios, recursos pragmáticos para viabilizar um certo projeto de agência. Mas nem o quarto ou o dinheiro garantem a nossa autonomia. Tampouco os nossos desejos devem ser restringidos ao controle de um espaço privado. Ao fim de Um quarto só seu, ela lista quais são seus desejos para as mulheres e a ficção apontando para o lado de fora:
“(…) gostaria de lhes pedir que escrevessem livros, sem hesitar diante de nenhum assunto, por mais trivial ou vasto que seja. De um jeito ou de outro, eu espero que vocês obtenham dinheiro suficiente para viajar e ficar sem fazer nada, para contemplar o futuro ou o passado do mundo, para sonhar com livros e vadiar nas esquinas e deixar que a linha do pensamento mergulhe fundo no riacho”.
Em A casa na Rua Mango, de Sandra Cisneros, uma casa ou um teto todo seu é uma imagem de autonomia. Nesse clássico da literatura chicana, a expectativa frustrada de viver em uma casa própria confortável e bonita é o começo de um desejo constitutivo.
Enquanto vive na casa da Rua Mango, Esperanza, a protagonista dessa ficção, sonha para si mesma um futuro ao qual possa pertencer. Enquanto sonha, inventa histórias e, nessas histórias, ela é uma mulher que escreve, não sobre a sua vida dos sonhos, mas sobre a sua origem: a Rua Mango.
Assim, cada episódio desse livro é um encontro entre a voz de uma menina que imagina para si um outro futuro e a da mulher que, depois de construir seu próprio lar, lança um novo olhar sobre seu passado.
O que conduz esta narrativa é o desejo por um gesto de autonomia: Poder contar sua história em seus próprios termos, o que implica em ter espaço, liberdade e autonomia.
A casa, nesse contexto, é uma condição material que dá concretude a esse desejo. Como uma folha em branco, a casa é a imagem de um começo.
Mas a autonomia, como a escrita, é um processo cujo fim é sempre indeterminado.
Trajetos de escrita é uma newsletter autoral e gratuita. Se você gostou desse texto, me ajuda a chegar em mais pessoas?
Oficina criativa - Escrever o desejo
Em junho, vou mediar a Oficina criativa: Escrever o desejo!
São dois encontros para ler e escrever o desejo a partir de um olhar insurgente. Vamos ler e praticar exercícios de escrita movidos por textos de Audre Lorde, Maria Isabel Iorio, Floresta, Matilde Campilho, Adrianne Rich, Grace Passo, Natasha Felix, entre outras leituras.
Os encontros são online via Google Meet nas quintas-feiras 15 e 22 de junho das 19 às 21 horas. As informações completas estão no Formulário de inscrição.
Links para os livros mencionados no texto:
Um quarto só seu, Virginia Woolf (Edição da Bazar do Tempo com tradução de Julia Romeu
A vulva é uma ferida aberta e outros ensaios, Gloria Anzaldúa (Edição da Bolha com tradução da Tatiana Nascimento)
A casa na Rua Mango, Sandra Cisneiros (Edição da Dublinense com tradução de Natalia Borges Polesso)
Que texto, Tais! Indiquei na minha newsletter de tanto que gostei. <3
Foi bom te ler Tais!
Recentemente decidi dividir meu apartamento, minha ideia é economizar grana e poder investir na minha formação em artes (cursos de teatro, oficinas, livros, viagens...). Meu maior medo dessa decisão é que dividir apartamento me fizesse parar de escrever. A angústia de trocar a solidão pelo dinheiro. A decisão é recente então não sei se o medo é real. De qualquer forma, seu texto me encorajou a pensar que um fato assim não precisa ameaçar a minha escrita. Me senti forte. Senti que é possível.