1.
“eles mentiram, não existe separação entre a escrita e a vida”. Tenho pensado nessa frase da Gloria Anzáldua, porque me vejo em um desses momentos em que é bastante nítido o quanto escrever muda a vida e viver muda a escrita.
2.
Este tem sido um ano intenso com uma temporalidade esquisita.
Penso no origami para tentar imaginar que a escrita cria uma forma enquanto dobra o tempo. Neste instante, não sei exatamente qual é o desenho que crio enquanto vivo-escrevo, mas sinto com precisão o movimento das dobras. Uma ponta que pertencia a um canto agora vem se encontrar com outro.
Em 2024, alguns projetos em que vinha me dedicando nos últimos anos começaram a ganhar corpo. Este é o ano em que lancei duas publicações: Expansão Marítima, livro que passei os últimos três anos escrevendo, e, agora, a zine Receitas para o fim, uma publicação que comecei a escrever em 2022, enquanto tentava elaborar o fim de um relacionamento amoroso.
“Ovos mexidos”, texto que deu origem a esse projeto, foi escrito na urgência de quem precisa usar as palavras para acessar os próprios sentimentos. Nasceu, portanto, de um desejo de autoexpressão, de uma necessidade de escrever para organizar o que estava vivendo. O preparo dos ovos mexidos é o que fica quando uma relação chega ao fim e a linguagem construída entre essas duas pessoas entra em extinção.
Depois de escrever esse texto, percebi que existia nele a possibilidade de um projeto de escrita em torno de dois temas: comida e coração partido. A partir daí a escrita foi se tornando algo um pouco além do meu desejo íntimo de me entender e elaborar uma experiência pessoal. Quando encontrei esses eixos, ganhei a possibilidade de inventar um percurso.
Em janeiro de 2022, estava longe de me desvencilhar dos efeitos daquela relação, mas, quando invento esse projeto de escrita, começo a imaginar um desenlace, uma jornada em que a narradora, ao preparar refeições, encontra um destino para as memórias depois do fim, escolhendo quais sabores e histórias se tornarão suas.
Se foi um acontecimento verídico que me levou até a escrita, essa ferramenta de autoexpressão, quando se torna um espaço de imaginação, transforma também a vida. Mesmo quando a gente usa um acontecimento real como material literário, escrever é abrir essa realidade, é necessariamente, fazer transformá-la em um campo aberto à imaginação.
Como Ana C. disse lá nos anos 1980 (comprovando que a autoficção não é nenhuma novidade): “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou”.
Escrever Receitas para o fim me deslocou no tempo. E agora, quando esse projeto se torna uma publicação física revivo aquilo que escrevi de um outro lugar, já muito distante do contexto que a originou, mas ainda bem próxima do processo criativo que tornou possível que essa história deixasse de ser minha para ganhar o mundo e, com sorte, se tornar uma ferramenta de imaginação e linguagem para outras pessoas.
3.
Dia desses estava falando com o
sobre chegar ao fim de um projeto de escrita. Conversávamos sobre como, apesar da alegria de concluir um trabalho e ver que, agora, ele tem vida própria, essa etapa não deixa de ser uma despedida e vem com um certo luto. Encerrar a escrita de um livro é fechar esse campo de imaginação. De repente, aquele universo em que você mergulhou, às vezes de forma obsessiva, não é mais só seu, é algo pronto, que agora, no melhor dos cenários, vai ser explorado por outras pessoas.Há mais ou menos um ano eu cheguei ao fim da escrita do Expansão Marítima e encerrar esse projeto produziu sensações que até hoje não sei muito bem nomear, mas que me demandaram muitos movimentos e mudanças. E quando o projeto se tornou livro e foi lançado em abril deste ano, eu me percebia uma pessoa e uma escritora muito diferente daquela que, em 2020, começou a investigar como contar a história de ser filha do seu pai. Quando o livro se torna um objeto concreto, eu não estou mais lá.
4.
Anotei em um caderno durante uma oficina de escrita da
: Escrevo para perder menos. De alguma maneira, Expansão marítima e Receitas para o fim têm isso em comum. São experiências de escrita que manejam perdas.Como disse a Carolina Aleixo, talvez todas os livros, filmes, criações humanas sejam no fundo sobre algum luto.
Mas me preparar para colocar estes projetos no mundo, entregá-los para caminhos que não passam mais por mim, tem um gosto diferente de fim. Chegar ao fim da escrita e transformá-la em um documento (quase) imutável é uma escolha. Quando me senti pronta para isso, senti esse gosto doce-amargo.
Finalizar a escrita e a edição dessas duas publicações foi também colocar estes lutos dentro de um enquadramento.
Inventar uma borda – ainda que simbólica – para o que vivi, não é deixar para trás, muito menos superar. Transformar estes lutos em um objeto fora de mim é compor um limite. Essa fronteira nada rígida tem sido, no entanto, eficaz em abrir espaço. É assim que me vejo agora: com muito desejo e espaço.
5.
Entre as dobras desse origami que a escrita faz com o tempo, coexistem projetos em estágios de vida distintos.
Agora que os textos deixaram de ser projetos em construção e se tornaram publicações, realizo a tarefa de me colocar fora deles, apresentando-os ao mundo. Como sou uma escritora independente, faz parte do meu ofício divulgar meus livros para que cheguem em mais pessoas. E por mais que esse seja um trabalho cansativo e que pode gerar ansiedade em alguns momentos (não precisar se expor em redes sociais é com certeza um luxo), eu meio que gosto de ser comunicadora/social media do meu CNPJ escritora.
(inclusive, você pode adquirir seus exemplares dessas publicações aqui)
Tento me divertir e fazer desse trabalho um processo de criação também. Esse é um momento de entender qual é o universo do livro, quais elementos fazem parte dessa história, como eu desejo apresentá-la para o público. Inventei, por exemplo, que todo livro tem uma coleção de emojis próprios. Os emojis do Receitas são um coração em recuperação e um pratinho de comida (❤️🩹e🥘) já os do Expansão são uma onda, um coração branco e um rostinho sorrindo mas deixando escapar uma lágrima (🌊,🤍 e🥲). Enfim, tento criar uma identidade própria para cada projeto e a partir daí pensar em imagens, temas e cores que me ajudem a comunicar seu universo.
Porém, ao mesmo tempo em que estou trabalhando na divulgação do Receitas para o fim e do Expansão Marítima, estou com os dois pézinhos na beira de uma história de fição, enquanto também estou com 1/3 do corpo mergulhado na minha tese de doutorado (e em breve, dou notícias sobre isso). Ou seja, enquanto ando por aí com objetos livros acabados, estou carregando por dentro projetos em aberto, que mais parecem uma massa informe de ideias, referências, caminhos, desejos.
Pensando nesse projeto de escrita de ficção, me inscrevi no curso Engrenagens do romance da
na Seiva* (e tô amando). Na primeira aula, ela estava contando que quando a gente começa a um projeto novo é comum esquecermos como foi que conseguimos pegar o ritmo da escrita, avançar e fazer todo o trabalho até o seu fim. Esquecemos dos momentos de indecisão, das travas e do tempo que leva. E é bem assim que me vejo agora, um tanto perdida no processo dessas escritas de fôlego longo, mas feliz de estar de novo aberta à imaginação, criando sozinha (mas sempre em troca com muita gente) um caminho para o que ainda vai vir.*Aliás, fica a recomendação: conheçam a Seiva, uma pequena editora, escola e comunidade criativa. Além dos livros e cursos serem ótimos, no site você encontra várias aulas de acesso livre, entre outros conteúdos gratuitos, como a newsletter diária Aurora.
**Outra recomendação é o episódio do Estratégias Narrativas sobre lançamentos de livros que inspirou bastante a escrita desta edição:
Oficina criativa: Escrever a infância
A pesquisa é parte fundamental dos meus projetos de escrita e tem sido muito interessante transformar esse material em oficinas criativas.
Escrever a infância é um desdobramento da pesquisa para o Expansão Marítima e também do meu doutorado na Puc-Rio em Literatura, cultura e contemporaneidade, onde pesquiso arquivo e produções de memória na arte brasileira pós-2018.
Essa oficina criativa investiga como a infância é um tema recorrente na literatura contemporânea. Ao longo de três encontros online, vamos ler textos de diferentes gêneros literários em que a infância é representada, analisando quais questões e problemáticas esse recorte temporal suscita. Além disso, ao fim de cada encontro será proposto um exercício de escrita criativa. Assim, vamos ler autores como Annie Ernaux, Heleine Fernandes, Tatiana Pequeno, Paul B. Preciado, Floresta, Estela Rosa, Calila Das Mercês, entre outres.
A oficina será online nas quartas do dia 26 de outubro a 06 de novembro das 19h às 21h.
Você pode conferir as informações completas e se inscrever neste link.
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Vou pensar no origami toda vez que der vontade de abandonar mais um projeto de escrita. É tão bom ler mais sobre os seus processos por aqui! Meus pais vieram me visitar e finalmente recuperei minha edição de "Expansão Marítima". Tô super animada pra ler <3
Que texto mais lindo!!! Amei a metáfora da escrita como origami fazendo dobras no tempo! Genial 🥰