Fala curta sobre Canto de Ossanha
A paixão é um estado de viver cobrindo as sombras. Quando elas escapam, talvez o amor comece.
É difícil amar quem está em fuga de si. Também é difícil receber amor quando tudo o que se quer é evitar as bordas de uma parte que não deve ser tocada.
Ainda assim, duas pessoas foragidas podem acabar se amando enquanto esbarram sem querer naquilo que supunham esconder.
Pelo menos até a hora em que as sombras dizem: já chega.
O primeiro livro que li em 2024 foi “Teoria da ressecção” de Tatiana Pequeno. Comprei o livro no seu lançamento na Flip, ensaiei começar sua leitura, mas sabia que se tratam de poemas que pedem uma presença.
Guardei o livro para quando pudesse abrir e seguir lendo um poema atrás do outro, sem saltos ou interrupção. Na primeira madrugada do ano procurei o livro. Era agora.
Com fôlego, segui até a metade. Parei quando os olhos já ardiam de sono.
“lembrei que poesia é contenção ritmo corte duro dizer menos doer ou vibrar mais dizer menos venho aprendendo tanto a dureza há tanto tempo que a poesia é menos uma história do sensível que a história de quem decepa profundamente quem decepciona mais”.
Dormi e sonhei que poetas contemporâneas estavam sendo perseguidas. Era preciso tomar cuidado. Uma espécie de maníaco rondava a cidade para atacar poetas, algumas que conheço e sou amiga. Eu também estava em risco.
Acordei pensando que esse pesadelo era um efeito preciso de ler até de madrugada a Tatiana Pequeno.
Os poemas de “Teoria da ressecção” são escritos por uma voz poética acossada. É uma mulher que está sendo ameaçada pela história, a do seu país e a sua, a história do seu corpo e de sua família.
Em “Teoria da ressecção”, a leitura teórica se enlaça com uma investigação psicanalítica - e eu diria também materialista histórica - para ensaiar uma memória. Não uma memória linear, límpida, apaziguadora. Mas a memória que resta, lacunar, irresoluta, ruidosa.
Sonhar que está sendo perseguida é o efeito de ler poemas como “o cobalt prata”, em que Tatiana mais uma vez escreve sobre a execução de Marielle Franco, produzindo imagens sobre este luto íntimo e político.
A sua poesia se ocupa das perdas, dos sonhos intranquilos, daquilo que ainda não somos e nunca seremos capazes de compreender ou de contar totalmente.
Conviver com essas lacunas e insistir em continuar viva, escolhendo uma vida de acordo com os seus sentidos e não com o que seus inimigos ditam. Parece ser isso que a voz poética do livro tenta.
Há na escrita de Tatiana uma brutalidade de quem vive acossada. Um se colocar pronta para o ataque. Uma escrita de cortes tão duros que não só deflagra a guerra, mas também revela quais são os efeitos de sobreviver em combate.
É neste ponto que algo acontece, o limiar. Aquilo que a linguagem poética permite, um certo tipo de ambivalência. Onde a dureza se mostra destemida é também o lugar em que a ferida desponta, a carne exposta, a possibilidade de se mostrar frágil.
É insistindo na ambiguidade, entre fragilidade e dureza, que a poesia de “Teoria da ressecção” tateia um meio de chegar até essa parte protegida, quase cicatriz.
Ir até a borda, olhar de perto e inventar nomes - ainda que incompletos - para dizer o que foi até então destinado a se manter encoberto, camuflado, não-dito. É mesmo um procedimento cirúrgico e arriscado o que Tatiana Pequeno opera com a sua Teoria da ressecção.
Oficina de Leitura e de Escrita de Verão
Na próxima segunda (dia 15), iniciamos a Oficina de Verão da Mulheres que Escrevem com mediação minha e da Estela Rosa!
São quatro encontros online para refrescar a criatividade, passeando pela prosa, poesia, ensaio e escritas híbridas.
Quem se inscreve recebe a cada encontro um dossiê de leituras e um exercício criativo. Essa oficina é uma ótima pedida para quem está em busca de começar 2024 escrevendo!
Para ler as informações completas e garantir sua vaga, basta acessar e preencher o Formulário de Inscrição. Vem escrever com a gente?
fiquei curioso para ler o livro... vou colocá-lo na minha lista!