1.Sei que pra muita gente dezembro é tempo de confraternização, é a celebração do fim que anuncia um imediato recomeço. Logo ali, vem a vida nova cheia de expectativas. É uma chance para sonhar. Mas, para mim, dezembro é só o fim. Me vejo suspensa em um interlúdio e o começo parece algo que ainda vai demorar para vir.
Não importa o que aconteça ao longo dos meses, de alguma forma, dezembro me alcança com todo o seu peso. Quando vejo, caio de volta nesse lugar, como se ele passasse o ano inteiro à minha espreita. Mais uma vez, estou com o coração partido, ouvindo Joni Mitchell cantar I wish I had a river… Chego a me perguntar se, entre tantas descontinuidades, retornar à tristeza é uma forma de manter uma tradição. Será que só reconheço a existência de um ciclo, porque dezembro novamente se apresenta com esse gosto repetido de coisa guardada?
2. Há algum tempo eu descobri que a única coisa que me ajuda a atravessar essa angústia é mergulhar. Ir à praia se torna um compromisso de me firmar na materialidade. É só no mar que estou onde eu estou. Enquanto mergulho, meu corpo e minha cabeça conseguem se reencontar. Estou presente.
3. O interlúdio deste dezembro é ainda mais radical. Nós vencemos uma eleição, mais uma em que o que estava em jogo era tudo aquilo que somos, tudo aquilo que ainda queremos ser. Vencemos com um custo ainda incalculável. Agora, vivemos um governo de transição. A sensação é de voltar a respirar. Mas será que ainda tenho corpo para comemorar a vitória?
Se por um lado, me sinto aliviada, falta um tanto de disposição para a alegria. Depois de mais de quatro anos de um projeto de destruição em ascensão, talvez leve um tempo para reconstruir a esperança.
4. Uma palavra tem aparecido com mais frequência nas minhas mensagens: “recuperar”.
Esse prefixo “re” me inquieta. Tenho pesquisado sobre o tempo, sobre as noções de tempo. Como é possível conceber presente, passado e futuro?
Recuperar implica em algum reconhecimento do que foi perdido, alguma ação que incide sobre o passado enquanto projeta mudanças para o futuro.
Me recuperar implica, então, em uma abertura entre os tempos. Exige mais do que a ruptura de deixar pra trás enquanto se arranca mês a mês as folhas do calendário.
Eu ainda não sei como olhar o passado sem transformá-lo em predestinação. Será que todo o mês de dezembro vai ser sempre assim? Acho que não. Tenho tentado ser tão dedicada a imaginar novos futuros como sou obcecada em remoer o que já foi. Mas o que isso faz do meu tempo presente?
5. Na minha vida pessoal, também me sinto em uma espécie de governo de transição. Estou tentando concluir uma segunda graduação, enquanto termino o mestrado e participo de processos seletivos para o doutorado. Movimentos que me demandam diferentes tipos de esforço, mas talvez nenhum seja tão desafiador quanto o trabalho em reafirmar meus planos como compromissos de vida, mesmo quando tudo ao meu redor me diz que esses planos não servem pra muita coisa, não valem muito, não podem me levar a muito longe.
O volume da incerteza é alto demais. Nem sempre eu consigo desviar de tanto ruído. Tem tempo que me sinto sendo levada - e me deixando levar - pra longe do meu desejo. Mas, de vez em quando, alguma coisa acontece. Um rompante de prazer inequívoco. Um indício de quem eu fui e de como esse passado vem me aproximando de quem eu quero ser.
(Talvez o interlúdio seja só um instante de silêncio que tenho dificuldade de suportar, porque deixar o desejo - ou a ausência de desejo - vir à tona é ser obrigada a realizar movimentos que nunca são exatamente fáceis ou mansos)
6. Esses dias apresentei um trabalho sobre o poema “Homenagem a Ricardo Reis” da Sophia de Mello Breyner Andresen. Nunca tinha lido essa série de poemas publicada no livro Dual. Li e reli o primeiro poema muitas vezes. Até entender que, entre a melancolia que tanto me convoca, há ali um pedido explícito contra a nostalgia. Uma inquietação radical diante do que ainda há para ser feito. Se o tempo é incessante, se nossa vida nos arrasta de dezembro a dezembro em um ritmo que escapa do nosso controle, é imprescindível não hesitar.
Enquanto falava sobre esse poema, na F-222, eu me sentia recuperando um pouco de quem sou. Me aproximando de um prazer que ficou perdido ali num cantinho entre o que deu pra eu ser nos últimos anos. De repente, estava radiante por estar falando, dentro de uma sala de aula, junto com outras pessoas, conversando, pensando, produzindo conhecimento. Uma sensação que não se fixa num instante, mas que me conduz, me norteia, quase como aquele rio que a Joni Mitchell anseia encontrar na sua música triste para pessoas solitárias na época do natal.
7. Fico pensando que, às vezes, não hesitar significa apenas olhar de frente para o que a gente não sabe. Viver as nossas tristezas. Respeitar os interlúdios. Olhar para o que foi perdido. Estar onde estamos. Desviar das performances de como deveríamos estar nos sentimos ou do que deveríamos estar fazendo. Encarar a incerteza com coragem. E, quando for a hora, quando o desejo despontar, saber também se lançar, mais uma vez, aos seus movimentos.
Alguns anúncios:
Você deve ter percebido que a Trajetos de escrita mudou de lugar. Resolvi experimentar essa nova plataforma porque um dos meus projetos para 2023 é voltar a escrever (e publicar!) com mais regularidade. Minha intenção é manter a newsletter em uma frequência quinzenal. Nossa linha editorial permanece a mesma: textos ensaísticos e recomendações de leitura. Espero que a gente converse mais no próximo ano!
E, caso você também queira escrever mais em 2023, te convido para conhecer meu novo projeto: O laboratório de escrita recorrente, uma comunidade de escrita para alimentar a criatividade e compartilhar processos criativos em encontros semanais. A cada mês um dossiê de textos será enviado e a cada encontro vamos colocar em prática um exercício de escrita. As informações completas estão no formulário de inscrição (corre que estamos fechando as últimas vagas!).
Em janeiro, também medio junto com a Estela Rosa a Oficina de Leitura e Escrita Mulheres que Escrevem. São quatro encontros para destravar a criatividade e refrescar a escrita passeando por diferentes gêneros literários. Vem escrever com a gente? Mais informações no formulário de inscrição.
Que nesse dezembro você seja gentil com a sua história nesse e que, no próximo ano, a gente reaprenda a sonhar.
Um abraço e até 2023,
Taís
Emocionei 💗
Sou migrante e a nostalgia me pega forte nessa época (embora no meu país eu nem gostasse muito de comemorar o natal). Vou guardar esse poema da Sophia para esses momentos em que a hesitação vier.
Feliz demais por ter encontrado a sua Newsletter 🌺.
me encontrei demais no seu texto, dezembro tem sido isso aí e pra começar a transição na vida, preciso me recuperar da exaustão dos últimos 4 anos. Puxado, mas necessário.
Agradeço pelas palavras <3