Criatividade é desejo
entre assistir um show da Madonna, escrever um livro e se permitir sonhar
Domingo 05/05/24
(Trecho de diário)
Acordo depois de meio-dia sem nenhum sinal de ressaca, apesar de ter perdido a conta das skol beats, e uma frase vem na cabeça: Criatividade é desejo.
No dia anterior, me juntei a uma multidão para ver Madonna cantar na praia de Copacabana. Passei a semana em dúvida, com medo do perrengue, dizendo que não tenho mais idade pra isso. Ao mesmo tempo, achando chique poder mudar de ideia, porque a única coisa que eu precisava fazer, caso resolvesse ir ao show, era carregar meu Riocard. Pois bem, acordei na sexta-feira pensando: não tem como, preciso ir nesse show.
Ainda bem que fiz isso por mim. Principalmente, fiz isso pela Taís adolescente que dançava vendo o clipe de Ray of Light na MTV (sempre sonhando que ia crescer e se tornar VJ).
Tem muito que pode ser dito sobre aquele show. A energia de milhares de gays batendo leque ao mesmo tempo. Os perrengues que viraram história para contar. O tamanho daquela produção. As amizades instantâneas no meio do caos. A libido no talo.
Mas vou me limitar ao que mais me pegou: Foi um show para contar a história de 50 anos de carreira de uma artista.
Fui pronta para dançar e me divertir, mas não sabia que era possível dançar e me divertir ao mesmo tempo em que me emocionava e refletia sobre a minha vida, sobre o que significa escolher ser artista e como é assustador e maravilhoso viver esse sonho.
Fiquei toda arrepiada quando Madonna falou pra não desistirmos dos nossos sonhos, porque um dia ela sonhou ser uma dançarina profissional e, veja só, hoje, ela é uma dançarina profissional.
Muita gente entendeu esse comentário como um gesto de modéstia, mas, vamos combinar, é a Madonna, a mulher não tem humildade (com razão). Para mim, essa fala foi muito mais sobre o quanto os nossos sonhos podem nos levar para caminhos inesperados.
Um dia ela sonhou em ser uma dançarina, se movimentou para fazer isso acontecer, teve que mudar de cidade, se reinventar, sobreviver com pouco dinheiro, descobrir um senso de disciplina, ser muito ambiciosa, entrar no jogo, e sonhar um pouco mais até chegar naquele grandioso show.
Perseguir um sonho é se abrir ao desejo. É também se permitir imaginar.
Um pouco mais a cada vez. Até que essa imaginação já não se prenda a qualquer limite, tabu, empecilho ou o que quer que seja visto como uma impossibilidade.
É sim um clichê dizer que Madonna é uma artista que quebrou barreiras. Mas é um clichê por ser verdade. Ali, dançando e me divertindo, eu imaginava tudo que aquela mulher se autorizou a sonhar, desejar, imaginar e dizer: Então, eu quero que seja assim, eu vou fazer isso, vai ser desse jeito.
Pequenininha em meio a mais de um milhão de pessoas eu também me sentia única. Não especial, mas singular. Ao ver aquela artista brilhando, lembrava que eu também brilho na frequência de sonhos que são só meus.
Criatividade é desejo, porque criar é um movimento de decisão, risco, vontade.
Porque, como o desejo, a criatividade borra fronteiras, não se prende a um objeto, não se esgota quando você coloca algo no mundo. Ela segue fluida, incessante, te pedindo um pouco mais. E a cada vez que você se autoriza a querer mais, a querer do seu jeito, esse desejo te conduz a lugares que, antes, eram inimagináveis.
Domingo, 01º de Janeiro de 2023
(trecho de e-mail que escrevi para mim mesma em 01º de janeiro de 2022)
Taís,
Hoje é um sábado com cara de domingo. O primeiro dia do ano sempre tem esse ar de ressaca universal. Hoje você se sente sonolenta e solitária. Você compara esse primeiro dia do ano com o último primeiro dia. Em 2021, você estava apaixonada, aberta ao novo, sem saber o que poderia acontecer, experimentando tudo o que podia. Você sente falta disso. Você se sente um pouco sem saber o que fazer com essa casa vazia e silenciosa.
Mas você sabe. Você sabe os motivos de ter ido embora. […]
Eu quero te agradecer por ter perseguido seu desejo.[…]
Estou escrevendo essa carta direto de 2022 e quero dizer para mim mesma como todos esses movimentos, toda essa busca por uma vida regida por desejo tem a ver com criação. Você quer criar uma vida que seja só sua. […]
Criatividade é desejo. E você não tem mais medo de ver até onde o seu desejo pode te levar. […] descobriu que não quer mais esse fardo de ser boa. Você quer sentir desejo. Quer se abrir ao desejo. Ainda que isso implique em rupturas, em distâncias e em algum nível de solidão.
Em 2022, você tem muitos sonhos e planos. Um mestrado para terminar, um livro pra escrever e um processo de doutorado para tentar.
Você tem medo.
Mas você também quer ver o que vai acontecer. Eu espero que você consiga se lançar.
[…]
Por, enquanto, seja gentil com você. Sinta o que for pra sentir. Chore. Acolha sua energia caótica. E escreva. Olhe para esse projeto que é contar a sua história. Confie que esse livro vai te levar em algum lugar, vai te transformar e é pra isso que você faz arte.
Domingo, 12/05/24
(trecho de diário)
Criatividade é desejo. Escrevi essa frase em um caderno no final de 2021. Era um exercício do livro O caminho do artista em que você deve escrever uma carta para uma versão de si mesma do futuro.
Eu estava vivendo o término de uma relação que começou e terminou durante a pandemia. E, como a maioria das pessoas, sofrendo o efeito esmagador de ter vivido esse período de reclusão, medo e tristeza. Me sentia um serzinho sem luz, desterritorializada, muito distante das coisas que me constituem e me dão vontade de viver, fazer planos, sonhar.
Ao mesmo tempo, estava sim fazendo muitos movimentos importantes. Escrevia a minha dissertação com o empenho possível, dava aulas de escrita criativa e trabalha muito em diversos freelas de revisão e preparação de textos. Era um período em que ser funcional e cuidar da minha vida em sentido prático era importante. A luz interna apagou mas ainda está funcionando.
Quando escrevi essa frase “Criatividade é desejo” tentava conjurar uma forma de voltar à vida, a vida que eu imaginava para mim. Fazer mais do que sobreviver, experimentar, criar, fruir.
Ali, naquele início de ano incerto em que não sabíamos o quanto era possível se arriscar, o quanto era seguro voltar às ruas e se ao fim, sairíamos vitoriosos ou não de uma eleição presidencial, eu me esforçava para imaginar o futuro.
Grafar essa frase era lembrar que sou uma artista e que criar é o que me coloca em movimento. Cuidar da minha criatividade é o que me faz brilhar.
No entanto, não é fácil ou rápido o processo entre entender isso e, de fato, confiar e se permitir viver esse desejo. Existem muitos momentos de hesitação, como fases de estio, até reunir coragem para perseguir esse brilho.
Em janeiro de 2023, quando recebi o e-mail escrito por uma Taís do passado, ainda me sentia opaca. A lista das coisas que eu me tinha me disposto a fazer estava sendo cumprida (afinal, me manter funcional é uma obrigação, por vezes insuportável).
Tinha terminado o mestrado, sido aprovada em dois processos seletivos de doutorado e estava escrevendo meu livro. Ainda assim, longe de me sentir uma pessoa desejante.
Por isso foi tão extenuante lembrar dessa frase no meio do show da Madonna, agora, em maio de 2024. Porque depois de anos muito difíceis, de idas e vindas comigo mesma e meu compromisso com meu desejo, me sentia, enfim, brilhando. Me sentia alguém que acabou de chegar em casa, como no refrão de Ray of Light.
Muita coisa mudou entre janeiro de 2023 e maio de 2024. Acho que a maior parte dessas mudanças foram internas (embora, eu tenha sim platinado o meu cabelo para ter a sensação concreta de que não sou mais a mesma pessoa).
Bati muito a cabeça comigo mesma pensando sobre ser artista, envelhecer, amar e ser amada, repetir ou recusar heranças familiares, querer alguma coisa que ainda não existe, sonhar, experimentar.
Me perguntei inúmeras vezes o que é mesmo que eu desejo e aos poucos fui sentindo essa pergunta como uma abertura. De repente, o inimaginável era o que eu precisava.
Expansão Marítima, o livro que terminei de escrever em agosto de 2023 e publiquei agora em maio de 2024, é parte e companhia desse processo.
De alguma forma esse livro é também a história de como eu escolhi seguir um caminho muito diferente do que meu repertório familiar me permitia e de como abrir esse vinco é insistir em um vida guiada pelos meu desejos, uma vida que não me está dada ou prescrita e, que portanto, a cada dia eu preciso criar.
Escrever esse livro foi trabalhar lentamente para firmar essa escolha: Criatividade é desejo e eu quero seguir desejante, inquieta aberta ao que meus sonhos me pedem para imaginar.
Lançamento do Expansão Marítima no Rio de Janeiro
Teremos tour de lançamentos do Expansão Marítima em três cidades: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
O primeiro lançamento será na Livraria da Travessa de Botafogo na próxima terça (11/06) a partir das 19 horas.
Se você, querida pessoa que me lê, for do Rio de Janeiro, te convido a participar desse momento tão especial para mim. Além de autografar os livros, estarei em uma roda de conversa com as escritoras Heleine Fernandes, Natasha Felix e Thayz Athayde. Vem? Vai ser bonito 🤍
Oficina criativa: Escrever o desejo
Ainda temos (poucas) vagas para a 5º edição da Oficina criativa: Escrever o desejo!
São dois encontros online para investigar como ler e escrever o desejo a partir de um olhar insurgente.
Quem se inscreve recebe, além de propostas de exercícios de escrita, um dossiê de leituras com textos de Audre Lorde, Maria Isabel Iorio, Floresta, Matilde Campilho, Adrianne Rich, Grace Passo, Natasha Felix, entre outras leituras.
As vagas são limitadas e as informações completas estão no Formulário de inscrição!
Vem escrever o desejo comigo? ❤️🔥
me identifiquei muito com essa frase: "me manter funcional é uma obrigação, por vezes insuportável". Acho que ando precisando me entregar mais aos meus desejos pra me conectar de novo comigo mesma, com o que quero, com meus sonhos. E não deixar que o piloto automático defina todos os meus passos
Chorei um pouquinho sim