1.
Me despeço de você correndo para não perder o uber que me espera.
Eu poderia ir à pé. Mas seriam uns 40 minutos andando na chuva. Então peço um carro.
O que poderia ser diferente se eu não tivesse tomado as escolhas que me fazem chegar até aquele cinema sendo conduzida por um desconhecido cujo nome mal cheguei a guardar?
Pensar em destino pode ser reconfortante para alguns. Para mim, às vezes, se torna um jogo de adivinhação.
Há sempre uma dúvida: Será que estou indo ao encontro do meu destino? Ou será que tudo poderia ser diferente?
2.
O trailer de “Vidas passadas” engana.
Você acredita que é um filme romântico. E embora seja sobre amor, sua história não tem o apelo envolvente de um romance que aplaca todas as dúvidas. Pelo contrário, é uma trama morna.
Para mim, “Vidas passadas” é um filme sobre escolhas.
Escolhas que às vezes não são tomadas por nós. Por exemplo, quando somos só crianças e grande parte da nossa vida está nas mãos de outras pessoas.
Mas o filme também fala das apostas que fazemos diante daquilo que não foi possível escolher. Movimentos que inventamos para nos aproximar o máximo possível do que desejamos ou acreditamos desejar para as nossas vidas. E como essa tentativa de aproximação costuma nos levar até lugares bastante diferentes daqueles que imaginávamos.
Porque inevitavelmente a vida se impõe sobre as nossas idealizações.
Dentro desse enquadramento, o destino, como o amor, não nos arrebata em um golpe de emoção.
O destino nos atravessa, nos acompanha. Está lá, entre os gestos banais, criando uma história, entre desejo e fatalidade, escolha e sorte.
3.
O café do cinema está ainda mais cheio do que na semana passada. Nenhum lugar para sentar. Mas chove e quase faz frio, depois de dias de muito calor. Parece um desperdício não aproveitar o clima ameno para se esquentar com um expresso. Decido sair do cinema e andar até uma loja dessas que você pede e leva um café para viagem. Chego lá e está fechada. Do outro lado, uma lanchonete nova. Entro, sou atendida por pessoas que não conheço. Passo quinze minutos escrevendo. Três ou quatro entregadores de aplicativos de delivery entram e saem levando lanches para pessoas que também não vão chegar a conhecer.
4.
Tem uma expressão em coreano "In-Yun". Significa "providência" ou "destino", mas é especificamente sobre relacionamentos entre pessoas. Eu acho que vem do Budismo e da reeencarnação. É um "In-yun" se duas pessoas desconhecidas se cruzam na rua e sem querer se esbarraram. Porque significa que houve algo entre elas em suas vidas passadas. Se duas pessoas se casam, dizem que é porque já havia 8 mil camadas de In-Yun entre elas através de mais de 8 mil vidas passadas.
O coração de Vidas passadas é a cena em que a voz em off da protagonista nos apresenta o conceito de “In-Yun”.
Essa é também uma cena que precede uma ruptura. Enquanto ela conta sobre essa matéria que liga pessoas através de suas vidas passadas, acompanhamos como o seu próprio destino está prestes a mudar.
É um daqueles momentos em que, depois, olhando a trajetória do tempo, você consegue apontar e dizer: foi aqui que começou algo que, na época, não era capaz de prever ou imaginar qual dimensão teria.
5.
Na fila para pipoca, encontro uma pessoa que conheço.
Nada demais, é o Rio de Janeiro, uma cidade em que as vidas passadas estão sempre embaralhadas, correndo o risco de invadir o presente e reaparecer dentro de um bar ou na próxima esquina.
É uma pessoa que não vejo há muito tempo. Um laço não muito claro. Alguém que já me viu em um momento delicado e, portanto, sabe alguma coisa sobre mim. Mas eu sei muito pouco sobre ela.
A fila é grande o suficiente para ser um assunto em comum. E nos ajudamos, nos revezamos para guardar nossos lugares enquanto fazemos coisas ao redor, comprar um refrigerante, buscar uma namorada.
Ao entrarmos na mesma sala de cinema, nos despedimos e seguimos cada uma para o seu lugar.
6.
Quando saio do cinema estou em dúvida do que fazer. Não sei se volto para casa ou se vou ao seu encontro.
O filme me faz olhar com mais atenção para a minha vida. Me pego consciente do que acontece ao meu redor, reparo nas pessoas, penso nas possibilidades, no que nos leva até aqui.
Qual é o caminho que vou fazer se eu for te encontrar?
Imagino as rotas. Ainda incerta, sigo até o metrô.
Enquanto atravesso um quarteirão que já foi cenário de outras noites de sábado, me sinto envolta em uma sensibilidade esquisita. Como se tivesse apertado um botão dentro de mim. Me impressiono com a falta de controle, me dou conta de que estou viva.
Tem algo de melancólico em se deparar com a incontingência. Aqui estou com a pessoa que acabei me tornando, meu repertório insubstituível de falhas, frustrações, concessões.
Mas coexiste com essa melancolia um certo triunfo. Um triunfo sem estardalhaço. Estou aqui sendo essa pessoa que só posso ser agora neste espaço e tempo.
Quando chego, enfim, no metrô, desço as escadas, carrego meu riocard e volto de novo à superfície.
Entro no 409, que vai até o bairro onde moro, mas antes passa pela Lapa.
Lembro de como essa mesma linha de ônibus já me levou para destinos tão diferentes. Me pergunto quantas camadas de In-Yun já deixei aqui.
Desço um pouco antes daquela encruzilhada, mais curiosa do que em dúvida.
7.
No fim da noite, assistimos à distância uma cena.
Dentro do bar uma senhora canta “esse cara”. Há balões de festa, parece ser o fim de um aniversário e o público acompanha a música um tanto embriagado. Um homem dorme sentado. Tem algo de único e bonito na imagem que vemos do lado de fora.
Ficamos ali, na rua, por um tempo observando essas pessoas que não nos percebem mas que agora também fazem parte das nossas vidas.
O filme pra mim tbm é sobre isso. Adorei o texto e suas cenas. ❤️
Esse filme me tocou tanto… também tive a sensação de sair do cinema mais sensível, perceptiva, reflexiva… a vida merece esse olhar!