Aftersun é um filme que convoca a nossa atenção e suspeito que isso não seja apenas uma escolha estética, mas tenha relação com o tema que essa obra aborda: A percepção de Sophie, a narradora do filme.
Logo nos primeiros minutos do filme, fiquei mexida com uma cena em que Sophie e seu pai, Calum, chegam ao hotel onde vão passar seus dias de férias. Não há ninguém para recebê-los no saguão, então, o pai vai em busca de ajuda. Sophie fica sentada em um dos sofás, de costas para a escada em que seu pai sobe à procura de algum funcionário. De repente, ele para, se vira e começa a descer de volta para o saguão. Mas, antes que diga algo ou que continue a descer a escada, ela avisa, sem nunca se virar para trás: eu estou bem.
Algo nessa cena nos indica um modo específico de atenção. A atenção de quem é capaz de ouvir uma pequena pausa seguida de uma mudança no som de alguns passos e interpretar corretamente o que isso significa.
Essa cena também nos diz algo sobre essa relação: A intimidade entre esses dois personagens é o lugar de um saber compartilhado.
Sophie sabe o que seu pai vai dizer e ele sabe que não precisa descer as escadas para checar se ela está mesmo bem e, por isso, dá meia volta e continua a subir os degraus.
O que não sabemos a partir dessa imagem é se o estado de atenção (ou seria de alerta?) de Sophie é algo que nasce a partir dessa relação ou se é um modo de percepção provocado por diversos outros fatores. Esse é um dos enigmas que o filme nos apresenta.
Independente da resposta, o modo como Sophie percebe o mundo ao seu redor é uma experiência que deve ser compartilhada por quem assiste Aftersun.
Para sermos a audiência-ideal desse filme, precisamos olhar e ouvir como uma menina de onze anos que está viajando por um território desconhecido. Precisamos tomar cada imagem, cada som, como um indício. Supor que nada é gratuito.
Onze anos é uma idade que por si só exige atenção. Aos onze anos, há uma fronteira, uma espécie de limbo em que você é velha demais para brincar com as crianças, mas também nova demais para ser verdadeiramente incluída entre os adolescentes. Sophie usa esse lugar estranho para observar as pessoas ao seu redor, incluindo seu pai. Um homem que, às vezes, é esquisito e faz movimentos de kung fu sozinho no meio da rua. Uma pessoa que, à sua própria maneira, parece ocupar uma espécie de limbo ou fronteira, aquela que o separa de um certo ideal do que seria um adulto (um pai?) funcional.
Outra cena que diz algo importante sobre essa relação é quando pai e filha estão na piscina e avistam do outro lado uma família nuclear tradicional: pai, mãe e dois filhos. Callum sugere que Sophie deveria ir brincar com essas crianças, ao que ela responde com desprezo: They are like… kids, demarcando que ela já não habita mais o terreno da infância. E aproveita para retrucar, dizendo que seu pai também deveria socializar com aqueles adultos. Dessa vez, é ele quem recusa: Eles são tipo… velhos.
Nem pai nem filha estão interessados ou disponíveis para o que aquela família tem a oferecer.
Em outra cena, o pai de Sophie é confundido por seu irmão, uma confusão que mostra não só a juventude desse pai que é apenas vinte anos mais velho do que sua filha, mas talvez também indique que há algo nessa relação que não cumpre muito bem o que se espera do comportamento entre um pai e uma filha.
Tem alguma coisa que falta nesse pai. E, no entanto, é a partir dessa falta que eles constroem um laço de intimidade.
Uma intimidade que não deixa de ser carregada de tensões. Por exemplo, quando Sophie quase perde sua máscara de mergulho e depois tenta se redimir, demonstrando uma culpa profunda por saber que aquilo custou caro ao seu pai - e que dinheiro é uma questão cara para ele. Ou quando ela insiste em cantar num karaokê e é abandonada por Calum que, subitamente, decide que ela não tem mais idade para aquilo.
São cenas que provocam ansiedade e desconforto sem, contundo, nos fornecer qualquer explicação sobre a origem de tais sentimentos. Aftersun dispensa uma narrativa, não apazigua, não justifica. Nós apenas acompanhamos o que Sophie observa e somos contaminados pelas suas sensações. Somos obrigadas, então, a nos perguntar de onde vem essa angústia? O que significa essa culpa? Por que ela se sente tão ansiosa? E as mesmas perguntas podem ser feitas em relação ao seu pai.
Para tentar entender nos colocamos, como Sophie, em alerta, prestando cada vez mais atenção ao que se passa.
Porém, se Sophie é o ponto a partir do qual olhamos para essa história, há um problema, porque essa não é uma narradora confiável. Ou, no mínimo, não é uma narradora que se limita ao espaço-tempo em que a trama parece acontecer.
Antes da história começar, antes de embarcarmos com Sophie e seu pai em uma viagem para o litoral da Turquia, o filme apresenta uma série de imagens que localiza esse evento em um contexto confuso. Há uma cena inicial em que Sophie grava seu pai e diz que quer entrevista-lo. Uma cena que fornece duas informações importantes sobre esses personagens: Ela tem 11 anos e ele está prestes a completar 31 anos. Além disso é uma cena de abertura que carrega uma pergunta: Quem você queria ser quando tinha 11 anos?
Em sequência, vemos a imagem de uma mulher adulta dentro de uma escuridão, seu rosto é iluminado, assim como o vulto de algumas pessoas. Pode ser que ela esteja em uma festa, uma boate, ou pode ser só um lugar escuro. Essa mesma mulher reaparece em alguns momentos interrompendo a linearidade da trama, infiltrando a história que até então acompanhamos.
O que sabemos dessa mulher adulta são também indícios: Aparentemente, ela assiste às gravações caseiras que nós também assistimos; é também o seu aniversário; ela tem uma filha ou um filho e é casada com uma mulher.
Sabemos pouco, mas o suficiente para nos deslocarmos no tempo. E, com isso, a história que vemos perde a espontaneidade de um presente que vai pouco a pouco se desenrolando. A partir da presença dessa mulher adulta, o que vemos torna-se o passado, uma memória.
E, então, é difícil não se perguntar o que acontece depois que as férias terminam. Quem essa filha se tornou? Como as experiências que ela viveu aos onze anos formaram a pessoa que hoje talvez esteja prestes a completar a mesma idade que seu pai tinha quando fizeram aquela viagem para Turquia? Será que ali ela já reconhecia algo do seu desejo? Como ser filha do seu pai influenciou a mãe que ela se tornou?
São perguntas que mudam as nossas possíveis interpretações das imagens que vemos.
Por exemplo, eu não paro de pensar que na noite em que deu seu primeiro beijo em um garoto, Sophie também viu dois meninos se beijando escondidos.
Tem algo desse olhar atento, quase investigativo, de uma garota de onze anos que parece ainda estar ali com aquela mulher adulta assistindo imagens de outro tempo.
E é essa presença desse duplo Sophie-crianca e Sophie-adulta que provoca uma torção no modo como percebemos as imagens de Aftersun. Como memórias, elas podem ser montadas e desmontadas, perdem a rigidez dos fatos e tornam-se parte de uma história que ainda está sendo contada.
O olhar da Sophie-adulta nos fala sobre a inconstância do passado que segue em aberto enquanto estamos vivas.
Porque o que escolhemos agora, no presente, enquanto nos lançamos ao desconhecido que é o futuro, pode sempre revirar a terra movediça das nossas lembranças fazendo com que aquilo que aconteceu ainda esteja se tornando alguma outra coisa.
Grande parte do meu interesse em assistir Aftersun vem do fato de estar escrevendo um livro sobre ser filha do meu pai (publiquei recentemente aqui o ensaio “Eu, meu pai e o mar”). Mas, bem antes do filme de Charlotte Wells ser lançado, um curta brasileiro já inspirava esse meu processo criativo: Rebu - A Egolombra de uma sapatão quase arrependida.
Conheci esse curta-metragem da diretora pernambucana Mayara Santana no festival Cachoeira Doc. em 2020 e fiquei um pouco obcecada. Eu nunca tinha visto algo parecido. Mais ainda, eu precisava muito conhecer a história de uma sapatão disposta a falar sobre seu pai, seus relacionamentos amorosos, suas repetições herdadas e o processo de ganhar consciência sobre sua raiva.
Mayara conta sua história a partir de seu pai com o humor de quem está disposta a encarar o que tem de mais conturbado e honesto em si mesma, sem perder, para isso, o carisma.
E se tem uma coisa que esse filme tem é um certo charme de quem faz um bom uso da linguagem. São muitos materiais que a diretora usa para cortar e costurar essa história que olha de frente o passado com desejo de que algo possa se transformar no futuro: memórias de seu arquivo pessoal, memes, músicas e uma pitada de psicanálise.
Quando eu assisti Rebu encontrei uma pergunta que eu também me fazia com um certo espanto: Como eu que ocupo um lugar social tão diferente do meu pai posso me parecer tanto com esse homem? O que tem nesse estranho que eu carrego de íntimo?
O que, em última instância, me leva a perguntar: Mas quem é mesmo esse homem além de ser meu pai? E quem sou eu sendo sua filha mas não apenas isso?
De alguma forma, quando assisti Aftersun imaginava se não era também algo assim que a Sophie adulta deveria estar se perguntando.
E quantas de nós não estamos inventando respostas para essas mesmas perguntas?
Tanto Aftersun quanto Rebu estão disponíveis para assistir online na Mubi (isso não é uma publi, mas poderia ser).
Falei um pouco sobre as minhas impressões do Rebu nesse episódio do podcast Méxi-ap.
Recomendo também essa entrevista da Mayara Santana para o Don’t touch my moleskine.
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um beijo e até mais,
Taís
esse filme é tão sensível. vi já faz um tempinho, mas é o tipo de coisa que fica ecoando na gente.
adorei seu texto, um beijo
Nossa, que ótimo texto! Qdo assisti Rebu fiquei tão mexida qto qdo assisti Aftersun mas não tinha feito essa ligação (tvz pela distância de tempo em q vi um e outro) mas faz todo sentido. Adorei!