#1 - Trajetos de escrita: passeios do mês
Manto da noite, Eros: o Doce-Amargo e Como se encontrar na escrita
Oi, gente,
Essa é a primeira edição da seção mensal da Trajetos de Escrita em que compartilho com vocês o que andei lendo, vendo e pensando. A ideia é também usar esse espaço para conversar sobre referências que estão influenciando meus processos criativos, como uma espécie de bastidores da escrita.
Dessa vez quero falar sobre dois livros foram minha companhia para dias de praia durante o mês de dezembro (porque sim, para surpresa de algumas pessoas no twitter, tem gente que realmente gosta de ler na praia): Manto da noite, da Carola Saavedra e Eros - o doce-amargo, da Anne Carson.
Apesar de receber a categoria “romance”, Manto da noite da Carola Saavedra é um exemplo perfeito do que a Anne Boyler chama de escrita anfíbia (e se quiser conhecer mais sobre esse conceito, confere essa tradução da Estela Rosa no Instagram da Mulheres que Escrevem). Dentro desse romance falam muitas vozes em formas diversas entre fragmento, diário, diálogos e ensaio.
Acho que, mais do que tudo, esse livro é uma investigação sobre até onde a linguagem pode ir quando quem escreve se propõe a rever parâmetros e mudar o eixo daquilo que conhece como literatura. Terminei a leitura pensando que precisava ler mais uma vez para entender, mas talvez o entendimento nem seja o ponto desse livro.
Para expandir minhas impressões e dúvidas, fui atrás do ensaio que Carola Saavedra escreveu sobre o processo de criação, compartilhando uma série de exercícios que se propôs para escrever O manto da noite. Como alguém que dá oficinas e laboratórios de escrita, esse ensaio é um presente. Gostei, em especial, de um exercício em que Saavedra executa um trabalho de tradução trabalhando com duas línguas, espanhol e português:
“Eu já estava escrevendo O manto da noite (em português, claro) e pensei em escrever um dos capítulos em espanhol e depois traduzi-lo para o português. O que surgiria dali, eu me perguntava, que voz seria essa? Não por acaso escolhi justamente o capítulo da infância. Essa escrita que sai de si. O resultado, após traduzir o capítulo para o português, foi uma voz na qual eu não me reconhecia. Quem era aquela criança? A resposta talvez esteja no livro, mas eu não a sei”.
Com tradução impecável de Julia Raiz, Eros: O Doce-Amargo é a tese de doutorado de Anne Carson, na qual investiga o desejo a partir da poesia de Safo e dos filósofos da Grécia antiga. Aqui a escrita também é híbrida, a pesquisa acadêmica assume uma forma fragmentada em que ensaio, tradução e poesia nos conduzem em capítulos breves até algum tipo de imensidão.
Esse livro chegou na minha casa em uma semana crítica e me acompanhou em cafés da manhã solitários, noites de insônia e uma viagem para uma cidade de praia. Em alguns momentos, eu precisava pausar a leitura, tirar os olhos da página e passar um bom tempo observando o mar.
A linguagem de Anne Carson é sedutora, ela vai te levando até que você se dá conta de que, para observar aquele conhecimento, é necessário também algum tipo de limite. Um tempo de vida fora do livro para processar, inclusive no corpo, o que ele tem a nos dizer. E sinto que ainda quero voltar, reler, pensar e, então, tentar de novo escrever algo sobre/a partir desse livro. Mas posso dizer que ele já influenciou a minha interpretação sobre o poema “Eu durmo comigo” da Angélica Freitas e o ensaio “Eu acordo comigo” que publiquei na última newsletter.
Nessa primeira leitura, o que mais me pegou foi a ideia de que o desejo prescinde uma fronteira para poder existir e como a linguagem - assim como o desejo - é uma invenção humana para manejar essa fronteira. O modo como Carson entrelaça conhecimento, desejo e linguagem é, talvez, uma das coisas mais bonitas que eu já vi. O meu exemplar está todo sublinhado e rabiscado, ler Eros: o Doce-Amargo foi mesmo estabelecer uma relação com o livro. Entre tantos trechos marcados, foi difícil escolher uma citação para destacar, mas deixo vocês com essa:
“A quebra interrompe o tempo e modifica os dados [...] Uma pausa faz uma pessoa começar a pensar. Quando contemplo os espaços físicos que articulam as letras “eu te amo” em um texto escrito, posso ser levada a pensar em outros espaços, por exemplo, no espaço que existe entre o “você” no texto e o você na minha vida. Esses dois tipos de espaço são criados por um ato de simbolização. Ambos exigem que a mente saia do agora, do que é presente e real, e tente alcançar outra coisa, uma coisa vislumbrar na imaginação. Tanto nas cartas quanto no amor, imaginar-se é dirigir-se ao que é pelo que não é. Para escrever uma palavra coloco um símbolo no lugar de um som que está ausente. Escrever as palavras “eu te amo” requer uma outra substituição análoga, que é muito mais dolorosa em sua implicação. A ausência de “você” na sintaxe da minha vida não é um fato que pode ser mudado por palavras escritas”.
Lendo livros sobre escrita:
Um dos meus objetivos para 2023 é ler mais livros que tenham a escrita como tema. Por atuar como profissional do texto e professora de escrita criativa, gosto de estar sempre em contato com o que outras pessoas que escrevem dizem sobre essa prática. É uma maneira de me inspirar e reciclar meu conhecimento. A palavra desse ano para mim é consistência e, por isso, estou buscando manter esse tipo de leitura em uma média mensal. Pretendo compartilhar esse projeto por aqui e também pelo Instagram.
Entre dezembro e janeiro, li Como se encontrar na escrita: O caminho para despertar a escrita afetuosa em você da Ana Holanda. Durante a adolescência, eu adorava a Vida Simples, revista da qual Ana é editora. Foi lendo os textos dessa revista que formei muitos valores que ainda são caros para mim. Lembro que foi também uma reportagem da Vida Simples que despertou em mim o sonho de viajar sozinha. Então, essa leitura foi um reencontro, porque pude imediatamente reconhecer nas palavras de Ana Holanda o estilo de escrita que é característico da Vida Simples.
Para mim, o ponto alto de Como se encontrar na escrita é justamente o conceito de “escrita afetuosa” criado pela autora. A ideia de que é possível colocar afeto nas nossas palavras e, a partir disso, produzir textos que de fato se conectem com outras pessoas é bastante poderosa. Quando começamos a prestar atenção e nos perguntar “Onde está o afeto nesse texto?” ou “Quais são as emoções que esse texto convoca?”, alguma coisa se transforma. Esse gesto de percepção realmente tem um impacto no modo como nos expressamos. E acho que pode ser interessante manter essas perguntas por perto em relação ao meu próprio processo de escrita.
Um aspecto que não curti tanto é que os capítulos contam com exemplos de textos para demonstrar os princípios e valores que Ana explora. Porém, em alguns momentos, esses exemplos são um pouco excessivos e tornaram a leitura cansativa para mim. Por outro lado, gosto do fato do livro ser bastante didático e Ana finalizar cada capítulo com um exercício de escrita. Achei que os exercícios se conectam muito bem com os temas dos capítulos e são propostas interessantes. Se você está em busca de um livro que vai te fazer não só refletir sobre a escrita, mas também colocar sua criatividade em prática, Como se encontrar na escrita pode ser uma boa pedida!
Laboratório Criativo - Investigando Projetos de Escrita
Em fevereiro, inicio a 4º edição do Laboratório Criativo - Investigando Projetos de Escrita!
São três encontros online aos sábados para quem tem um projeto de escrita em desenvolvimento ou guardado na gaveta.
Esse é um laboratório para dar um gás na criatividade e orientar caminhos possíveis para a escrita. Como é um espaço de trocas intimista, as vagas são limitadas. Para se inscrever, é só responder ao Formulário de Inscrição e as informações de pagamento serão enviadas para seu e-mail.
Um beijo e até a próxima edição,
Taís
Obrigada Taís pelas referências e propostas, amei!
Como assim as pessoas não gostam de ler na praia? Não vou a praia sem meu Kindle.